terça-feira, 10 de junho de 2008

Ovídio e as guerras da água


"Porque me proibis a água? O uso da água é comum a todos. Nem a natureza produziu um sol privado, nem o próprio ar, nem a fluida água. É um bem público aquilo a que venho."

Ao ler hoje esta passagem das "Metamorfoses" de Ovídio, na mui excelente tradução de Paulo Farmhouse Alberto para as Edições Cotovia, passaram-me pelo espírito duas ideias:
- a primeira, a recente crise de abastecimento de água a Barcelona, que avivou o mal-estar madrileno / catalão ao ponto de amigos meus de ambas as "facções" comentarem sobre a vileza dos outros;
- a segunda, a célebre frase de Boutros-Ghali, antigo Secretário-Geral das Nações Unidas, que num discurso de 1985 preconizava que as próximas guerras no Médio Oriente seriam pela água, não pela política.

Como a História já provou, as previsões de Boutros-Ghali pecaram por demasiado cedo; ainda houve umas guerras com outros motes pelos lados do Médio Oriente (mais cautelosamente, mas igualmente apocalíptico, em 1995 em entrevista à revista Newsweek, Ismail Serageldin, Vice-Presidente do Banco Mundial, prenunciava "Many of the wars this century were about oil, but those of the next century will be over water.")

Mais interessante, seria perceber as estratégias de defesa de países com abastecimentos de água doce porventura periclitantes. Por exemplo, se numa crise de abastecimento de água em Espanha se cortarem os caudais do Tejo, do Douro, do Minho e do Guadiana, Portugal terá água suficiente para a sua população se abastecer e para a geração de electricidade nas suas barragens? E se não tiver, pega-se em armas e ala para Castela? O PEAASAR 2007-2013 parece apostar na boa vontade.
Dezenas de líderes mundiais reuniram-se esta semana em Roma na sede da FAO para endereçar o problema da escassez mundial de alimentos, provocada parcialmente pela falta de água em África, na Austrália e em Espanha. Na Austrália, é proibido (e punido) lavar o carro em determinados dias e existem frequências mínimas; em Espanha idem aspas. Nestes países, há campanhas para poupança de água em todos os meios de comunicação.
A obra-prima de Ovídio, terminada em 8 D.C., apresenta um paradigma da água como bem público que se manteve dois mil anos - embora a previsão de Boutros-Ghali tenha falhado (por alguns anos?), parece improvável que o paradigma se mantenha até 4008.

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