quinta-feira, 25 de setembro de 2008

A gaivota que não queria ser

Do Clube de Contadores de Histórias recebi esta integrada no projecto "Abrir as portas ao sonho e à reflexão"

A gaivota que não queria ser
Era uma vez uma gaivota que gostava de ser pomba.
Dizia ela que as gaivotas não servem para nada, ao passo que as pombas sempre servem para alguma coisa.
— Levam cartas, mensagens, avisos de um lado para o outro — explicava ela às outras gaivotas. — São as pombas ou os pombos-correios.
— Também há quem as cozinhe com ervilhas — interrompeu-a uma gaivota trocista.
— Essa serventia a nós não nos interessa — arrepiaram-se as outras gaivotas, que voaram, alarmadas.
Ficou sozinha a gaivota que queria ser pomba. Servir de cozinhado também não estava nas suas ambições, mas à falta de outro préstimo… E pensou: “Gaivota estufada”, “Gaivota de cabidela”, “Gaivota guisada com batatas”…
Realmente, não lhe soava bem. E menos bem devia saber, porque nunca lhe constara que os humanos, de boca aberta para todos os gostos, tivessem incluído tais receitas nos seus livros de cozinha.
A gaivota que queria ser pomba ficou a olhar o mar. Ia abrir as suas asas para as lançar sobre as ondas, à cata de peixinho para o almoço, quando um estranho torpor lhe tomou o corpo. Deteve-se. Encolheu-se. Tapou a cabeça com uma asa. Aquilo havia de passar.
As outras gaivotas, que há pouco tinham debandado, regressavam à praia, apanhadas pelo mesmo entorpecimento que atingira a gaivota desta história.
Formaram um bando tiritante, rente ao mar. Umas, levantadas numa só pata, outras escondidas numa cova da areia, olhavam as águas esverdinhadas, espumosas, como turistas descontentes com a paisagem.
— Estão as gaivotas em terra — disse uma voz humana, abrindo uma janela, junto à praia. — Vai haver tempestade. Sendo assim, já não me arrisco a ir para o mar.
De facto, quando as gaivotas ficam em terra, os pescadores sabem que o tempo vai mudar. Elas é que dão o sinal. Elas é que sabem. Elas é que pressentem quando a tempestade se aproxima.
“Afinal, sempre tenho alguma utilidade”, pensou a gaivota que queria ser pomba, toda enrolada numa bola de penas, e, daí em diante, preferiu continuar a ser gaivota.
António Torrado

4 comentários:

  1. OS DOIS GATOS OU O GATO DO TELHADO E O GATO DE JANELA

    Mia o gato vagabundo
    este fado arrepiado,
    mal trinado e sem viola:

    «Sou um gato de telhado,
    gato pobre, maltratado.
    Engulo espinha, mastigo sola...
    Não ando à esmola.
    Como de tudo: casca grainha...
    Coisa daninha que caia em cima
    que caia à beira do meu focinho
    é coisa minha, para a minha ceia
    um petisquinho.
    [...]

    Repimpado e resguardado
    no seu trono de janela,
    resmunga o gato anafado
    para o gato do telhado
    das ruelas, das vielas
    e de todo o vasto mundo
    onde não haja cancelas
    nem portadas nem janelas
    nem resguardos nem tutelas...

    Resmunga o gato à janela:
    «Vai-te gato vagabundo.
    Passa de largo.
    Não me incomodes com os teus miados
    requebrados, requentados, mal chorados.

    Sei de cor a tua história
    de desaires e mazelas...

    De mim não levas nada
    que não gosto de novelas.»
    [...]

    António Torrado
    In: Versos de pé folgado. Lisboa: Caminho, 1979

    Não pude transcrever na totalidade este poema de António Torrado - um dos mais conceituados escritores de livros para crianças -, por ser um pouco longo.
    M.

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  2. Belo conto de António Torrado.
    E aproveitando a embalagem do anónimo anterior, aqui vai:

    […]

    - Olha o macaco mariola
    que do rabo fez navalha
    da navalha fez sardinha
    da sardinha fez farinha
    da farinha fez menina
    da menina fez camisa
    da camisa fez viola
    e agora deu à sola
    e agora deu à sola.

    O macaco no telhado, repimpado, pegou na viola e respondeu-lhes:

    - Pois se agora dei à sola
    pois se agora vos fugi
    é que a mim ninguém me enrola
    e de mim ninguém se ri.
    Tinglintim, tinglintim,
    Tinglintim, tinglintim.

    Cá em baixo, continuava a surriada. Riam-se e cantavam com ele:

    - Olha o macaco mariola,
    estarola e gabarola
    com pancada na cachola,
    dá e tira, mata e esfola,
    ora parte, ora cola,
    ora mete para a sacola…
    Dá a esmola, tira a esmola,
    Mariola, mariola
    quem te meta na gaiola,
    quem te meta na gaiola.
    […]

    António Torrado – «O macaco do rabo cortado». In: Histórias tradicionais portuguesas contadas de novo. Porto: Civilização, 2002

    Lembram-se desta história? Quando a aprendi a cantarolar, o final da lengalenga era: «[…] da camisa fez viola / truz truz truz / que foi p’r’Angola».

    Este livro leva-nos às histórias da nossa infância. Tem histórias como «A machada machadinha do José e da Joaquina», «A Nau Catrineta», etc.

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  3. NAU CATRINETA

    Lá vem a Nau Catrineta
    Que tem muito que contar!
    Ouvide agora, senhores,
    Uma história de pasmar.

    Passava mais de ano e dia
    Que iam na volta do mar,
    Já não tinham que comer,
    Já não tinham que manjar.

    Deitaram sola de molho
    Para o outro dia jantar;
    Mas a sola era tão rija,
    Que a não puderam tragar.

    Deitaram sortes à ventura
    Qual se havia de matar;
    Logo foi cair a sorte
    No capitão general.

    - "Sobe, sobe, marujinho,
    Àquele mastro real,
    Vê se vês terras de Espanha,
    As praias de Portugal!"

    - "Não vejo terras de Espanha,
    Nem praias de Portugal;
    Vejo sete espadas nuas
    Que estão para te matar."

    - "Acima, acima, gageiro,
    Acima ao tope real!
    Olha se enxergas Espanha,
    Areias de Portugal!"

    - "Alvíssaras, capitão,
    Meu capitão general!
    Já vejo terras de Espanha,
    Areias de Portugal!"
    Mais enxergo três meninas,
    Debaixo de um laranjal:
    Uma sentada a coser,
    Outra na roca a fiar,
    A mais formosa de todas
    Está no meio a chorar."

    - "Todas três são minhas filhas,
    Oh! quem mas dera abraçar!
    A mais formosa de todas
    Contigo a hei-se casar."

    - "A vossa filha não quero,
    Que vos custou a criar."

    - "Dar-te-ei tanto dinheiro
    Que o não possas contar."

    - "Não quero o vosso dinheiro
    Pois vos custou a ganhar."

    - "Dou-te o meu cavalo branco,
    Que nunca houve outro igual."

    - "Guardai o vosso cavalo,
    Que vos custou a ensinar."

    - "Dar-te-ei a Nau Catrineta,
    Para nela navegar."

    - "Não quero a Nau Catrineta,
    Que a não sei governar."

    - "Que queres tu, meu gageiro,
    Que alvíssaras te hei-de dar?"

    - "Capitão, quero a tua alma,
    Para comigo a levar!"

    - "Renego de ti, demónio,
    Que me estavas a tentar!
    A minha alma é só de Deus;
    O corpo dou eu ao mar."

    Tomou-o um anjo nos braços,
    Não no deixou afogar.
    Deu um estouro o demónio,
    Acalmaram vento e mar;

    E à noite a Nau Catrineta
    Estava em terra a varar.

    Almeida Garrett

    M.

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  4. Amanhã vou ver se encontro a versão do António Torrado.
    M.

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