Nela, vive o som que os deuses roubaram
ao fugitivo amante; sem destino, consome-se
no fundo de um espelho que repetiu o choro
da amada. Não o ouviu; nem viu essa
cuja beleza a terra sepulta, solitária,
condenada ao jogo da natureza. Olha-se,
fixamente, despindo-se da folhagem
que as chuvas acumularam no abrigo dos vales;
cobrindo-se com o brilho húmido que ofuscou
o furtivo aceno; dançando, enfim, quando
o vento envolve os arbustos com o desvelo
de um murmúrio de flauta. Aqui,
engana-o a imagem de que fogem as águas
que o seu reflexo suspende, detendo
o inelutável tempo; nenhuma súplica, porém,
restituirá um corpo à sombra
que persegue. Tão perto, no entanto, dos seus
braços que imitam a realidade!, procura
o seu conforto no fundo das fontes. «Quem és?»
«És», repete, sem que a voz se distinga
- e os seus lábios se revelem, turvos
de ânsia, num rigor de verso.
- Nuno Júdice, AS REGRAS DA PERSPECTIVA, Quetzal Editores, 1990.
Narciso
ResponderEliminarDentro de mim me quis eu ver. Tremia,
Dobrado em dois sobre o meu próprio poço...
Ah, que terrível face e que arcabouço
Este meu corpo lânguido escondia!
Ó boca tumular, cerrada e fria,
Cujo silêncio esfíngico bem ouço!
Ó lindos olhos sôfregos, de moço,
Numa fronte a suar melancolia:
Assim me desejei nestas imagens.
Meus poemas requintados e selvagens,
O meu Desejo os sulca de vermelho:
Que eu vivo à espera dessa noite estranha,
Noite de amor em que me goze e tenha,
...Lá no fundo do poço em que me espelho!
José Régio, Biografia
A.R.
É bonito o "Eco de Narciso" do Nuno Júdice.
ResponderEliminarObrigada.
A.R.