terça-feira, 28 de outubro de 2008

Eco e Narciso

Nela, vive o som que os deuses roubaram
ao fugitivo amante; sem destino, consome-se
no fundo de um espelho que repetiu o choro
da amada. Não o ouviu; nem viu essa
cuja beleza a terra sepulta, solitária,
condenada ao jogo da natureza. Olha-se,
fixamente, despindo-se da folhagem
que as chuvas acumularam no abrigo dos vales;
cobrindo-se com o brilho húmido que ofuscou
o furtivo aceno; dançando, enfim, quando
o vento envolve os arbustos com o desvelo
de um murmúrio de flauta. Aqui,
engana-o a imagem de que fogem as águas
que o seu reflexo suspende, detendo
o inelutável tempo; nenhuma súplica, porém,
restituirá um corpo à sombra
que persegue. Tão perto, no entanto, dos seus
braços que imitam a realidade!, procura
o seu conforto no fundo das fontes. «Quem és?»
«És», repete, sem que a voz se distinga
- e os seus lábios se revelem, turvos
de ânsia, num rigor de verso.


- Nuno Júdice, AS REGRAS DA PERSPECTIVA, Quetzal Editores, 1990.

2 comentários:

  1. Narciso

    Dentro de mim me quis eu ver. Tremia,
    Dobrado em dois sobre o meu próprio poço...
    Ah, que terrível face e que arcabouço
    Este meu corpo lânguido escondia!

    Ó boca tumular, cerrada e fria,
    Cujo silêncio esfíngico bem ouço!
    Ó lindos olhos sôfregos, de moço,
    Numa fronte a suar melancolia:

    Assim me desejei nestas imagens.
    Meus poemas requintados e selvagens,
    O meu Desejo os sulca de vermelho:

    Que eu vivo à espera dessa noite estranha,
    Noite de amor em que me goze e tenha,
    ...Lá no fundo do poço em que me espelho!

    José Régio, Biografia
    A.R.

    ResponderEliminar
  2. É bonito o "Eco de Narciso" do Nuno Júdice.
    Obrigada.
    A.R.

    ResponderEliminar