E foi por este rio de soneira e de barro
que vieram as proas fundar a minha pátria?
Iriam aos balanços os barquinhos pintados
no meio dos camalotes da corrente falsa.
Pensando bem a coisa, suponhamos que o rio
era então azulado como oriundo do céu
com a sua estrelinha rubra para marcar o sítio
em que jejuou Juan Díaz e os índios comeram.
O certo é que mil e outros mil arribaram
por um mar que contava cinco luas de largo
e inda estava povoado de sereias e endriagos
e de pedras magnéticas que enlouquecem a bússola.
Penduraram uns farnéis tremulos na costa,
dormiram desterrados. No Riachuelo, dizem,
mas isto são embustes inventados na Boca.
foi todo um quarteirão e no meu bairro: em Palermo.
Um quarteirão inteiro na metade do campo
presenciado de auroras, chuvas e sudestadas.
O quarteirão parelho que persiste no meu bairro:
Guatemala, Serrano, Paraguai, Gurruchaga.
Um armazém rosado como reverso de baralho
cintilou e nos fundos combinaram um truco*;
esse armazém rosado floresceu num compadre,
logo dona da esquina, já melindrado e duro.
O primeiro realejo saudava o horizonte
com o achacoso porte, a habanera e o seu gringo.
O corralón confiante já opinava: YRIGOYEN,
algum piano mandava tangos de Saborido.
Uma tabacaria aromou como uma rosa
esse deserto. A tarde aprofundara-se em ontens,
os homens partilharam um passado ilusório.
Só faltou uma coisa: a vereda defronte.
Por mim não posso crer que começou Buenos Aires:
Tenho-a por tão eterna como o ar e a água.
Jorge Luís Borges
In: Nova antologia pessoal / trad. de Maria Piedade Ferreira. Lisboa: Difel, 1987
*Jogo de cartas
«Tenho-a por tão eterna como o ar e a água», no meu caso: Lisboa.
ResponderEliminarBonito elogio de Borges.
ResponderEliminarA.R.