sábado, 7 de março de 2009

Ravel, por Jean Echenoz

Ravel, um livro maravilhoso que terminei há alguns dias e de que transcrevo uns excertos, narra os últimos dez anos da vida do compositor que faria hoje 134 anos.


«As férias acabaram. Agora está sentado ao piano, em sua casa. Com uma partitura à sua frente, cigarro nos lábios e, como sempre, impecavelmente penteado. Por baixo do roupão de bandas claras e bolso a condizer, traz uma camisa de riscas cinzentas e uma gravata em tons de bronze. Em posição de acorde, a mão esquerda está sobre as teclas do piano enquanto a direita, exibindo uma lapiseira de metal presa entre o indicador e o dedo grande, anota na partitura o que a esquerda acaba de criar. […]
«E a seguir, como acontece sempre que está só, faz a sua refeição virado para a parede, na mesa recuada. Ao devorar a carne, a dentadura faz um ruído de castanholas ou de metralhadora que se repercute na sala apertada. Come e vai reflectindo no que fez. Sempre gostou de autómatos e de máquinas, de visitar fábricas, de paisagens industriais, lembra-se do que viu na Bélgica e na Renânia quando passou por lá num iate de rio há mais de vinte anos, de cidades eriçadas de chaminés que expeliam chamas e fumos vermelhos e azulados, de castelos de fundições, de catedrais incandescentes, de sinfonias de correias, de silvos e sons de martelos, sob um céu escarlate.
«[…] É verdade que existia, por essa altura, uma fábrica que Ravel apreciava especialmente e que ficava junto à ponte de Rueil, a caminho de Vésinet, a fábrica dava-lhe ideias. É isso: está em vias de compor qualquer coisa que se inspira no trabalho em cadeia.
«Em cadeia e repetidamente, a composição é acabada em Outubro […]. Tem plena consciência do que fez, mas não existe estrutura a bem dizer, nem desenvolvimento, nem modelação, só ritmo e arranjos de orquestra. […]
«Mas apesar de ele sentir por essa obra um certo desprezo, não quer dizer que se deva encará-la de ânimo leve. E é preciso que o mundo compreenda também que não se pode divertir à custa do seu andamento. Quando Toscanini vai dirigi-la à sua maneira, duas vezes mais rápido e accelerando, Ravel vai ter com ele, bastante frio, depois do concerto. Não foi com o meu andamento que o senhor tocou o Boléro, fez-lhe ele notar. Toscanini inclina-se para Ravel, tornando ainda mais comprido o rosto e enrugando ainda mais o frontão que lhe faz a vez de testa. Quando toco com o seu andamento, diz, não consigo retirar-lhe o mínimo efeito. Pois bem, replica Ravel, deixe de tocá-lo. O senhor não conhece nada da sua música, há um frémito nos bigodes de Toscanini, foi a melhor forma de o tornar aceitável. Ao voltar a casa, sem dizer nada a ninguém, Ravel escreve a Toscanini. Não se sabe o que ele lhe disse nessa carta.»
Jean Echenoz – Ravel / trad. do francês por Armando Silva Carvalho. Lisboa: Sextante, 2007, p. 62-65
€13,00

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