Da Amizade 1
(a) Ao observar a maneira como um pintor ao meu serviço faz, em minha casa, a sua obra, veio-me o desejo de o imitar. Escolhe ele o local mais belo no meio de cada parede para aí pôr um quadro, em que emprega todas as forças do seu talento, e o espaço vazio em redor, enche-o de grotescos, pinturas fantásticas cuja graça reside na variedade e na estranheza. Que são, na verdade, estes meus escritos senão grotescos e corpos monstruosos, compostos de diversos fragmentos, sem configuração determinada, nem ordem, sequência ou proporção, a não ser fortuitas?
Desint in piscem mulier formosa superne
[«Termina em peixe uma mulher formosa na parte superior» - Horácio, Ars Poética, 4]
Acompanho o meu pintor quanto a este último ponto, mas não logro fazê-lo no respeitante à outra, e melhor, parte, pois as minhas capacidades não vão tão longeque eu me aventure a intentar um quadro rico, bem acabado e composto segundo as regras da arte.
Michel de Montaigne, Da Amizade e Outros Ensaios, Lisboa: Editora de Livros de Bolso, 2009, Liv. I, 28º Cap., p.9.
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