quarta-feira, 3 de junho de 2009
No seguimento de um post e de um comentário...
Lisboa: Contraponto, 1953
(A editora de Luís Pacheco)
Em louvor e simplificação de Álvaro de Campos
Há uma hora, há uma hora certa
que um milhão de pessoas está a sair para a rua
Há uma hora desde as sete e meia horas da manhã
que um milhão de pessoas está a sair para a rua
Estamos no ano da graça de 1946
em Lisboa a sair para o meio da rua
Saímos? mas sim, saímos!
Saímos: seres usuais, gente-gente, olhos, narinas, bocas,
gente feliz gente infeliz, um banqueiro, alfaiates, telefonistas, [varinas, caixeiros
desempregados
Uns com os outros, uns dentro dos outros
tossicando, sorrindo, abrindo os sobretudos, descendo aos [mictórios para apanhar
eléctricos,
gente atrasada em relação ao barco para o Barreiro
que afinal ainda lá estava apitando estridentemente,
gente de luto, realmente silenciosa
mas obrigada a falar ao vizinho da frente
na plataforma veloz do eléctrico em marcha,
gente jovial a acompanhar enterros
e uma mãe triste a aceitar dois bolos para a sua menina.
Há uma hora, isto: Lisboa e muito mais.
Humanidade cordial, em suma,
com todas as consequências disso mesmo
e a sair a sair para o meio da rua.
[…]
Não transcrevo mais porque o poema é muito grande. Mas aproveitei para o reler. O que faço frequentemente.
E Mário Cesariny teria escrito este poema sem a «Ode Marítima»?, de que aqui fica também o início:
Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de Verão,
Olho pró lado da barra, olho pró Indefinido,
Olho e contenta-me ver,
Pequeno, negro e claro, um paquete entrando.
Vem muito longe, nítido, clássico à sua maneira.
Deixa no ar distante atrás de si a orla vã do seu fumo.
Vem entrando, e a manhã entra com ele, e no rio,
Aqui, acolá, acorda a vida marítima,
Erguem-se velas, avançam rebocadores,
Surgem barcos pequenos detrás dos navios que estão no porto.
Há uma vaga brisa.
Mas a minh'alma está com o que vejo menos,
Com o paquete que entra,
Porque ele está com a Distância, com a Manhã,
Com o sentido marítimo desta Hora,
Com a doçura dolorosa que sobe em mim como uma náusea,
Como um começar a enjoar, mas no espírito.
Olho de longe o paquete, com uma grande independência de alma,
E dentro de mim um volante começa a girar, lentamente.
[…]
Lindo poema de Cesariny.
ResponderEliminarAdoro este poema. Conheci Cesariny já muito velho e débil, mas ainda com uma mordacidade de espantar.
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