domingo, 19 de julho de 2009

A Adoração dos Pastores - séc. XV


Não querendo ser "chato" mas correndo esse risco, deixo o texto que resultou das reflexões em torno da representação da Adoração dos Pastores. Agradeço comentários ou outras interpretações, dado que a imagem, tanto quanto consegui averiguar, nunca fora descrita nem interpretada.
A representação da adoração dos pastores antecede, ilustrando-a, a liturgia rezada em louvor da Virgem na hora de terça. É um tema complementar da Natividade simbolizando a segunda genuflexão a Jesus, a dos humildes. A adoração dos pastores é uma peculiaridade do evangelho de Lucas [2,8-20]. Mas para a idealização apresentada não foi a Bíblia a base de inspiração dado que o sinal que permitiria a identificação seria: “um Menino envolto em panos e deitado numa manjedoira” [Lc 2,12]. Não conseguimos localizar a fonte inspiradora para a imago dadas as suas características particulares (*). Apenas sabemos que ela pertence a uma nova colecção de ilustrações que Simon Vostre vai, gradualmente, utilizar nas Horae que manda imprimir, em Paris, a partir de 1495. Esta gravura, em particular, foi utilizada, senão antes, nas Heures, datadas de 22 de Agosto de 1498 . Uma das grandes originalidades da imagem é os adoradores serem denominados, em inscrição aberta no cunho, pelos seus nomes: para as mulheres Mahault e Alison; para os homens Ysanber, le beau Roger, Gobin le gay e Aloris .
Num estábulo, que deixa observar cenas de uma cidade que se espraia por detrás, encontra-se a Sagrada Família com o Menino deitado no colo da Virgem. A vaca e o burro, comendo feno, enquadram o fundo. Os pastores encontram dispostos em círculo ante a Sagrada Família e oferecem objectos do seu quotidiano ou os seus próprios alimentos.
Somos tentados a interpretar essas ofertas:
  • Ysanber oferece o seu cajado de pastor, símbolo de comando, ao Messias, que se transforma no pastor da nova Igreja;
  • Mahault oferece o cordeiro, símbolo da inocência e da pureza, ao Messias, que se transforma no cordeiro de Deus, o que tira os pecados do Mundo;
  • Roger oferece a flauta, símbolo de encantamento, ao Messias, que se transforma na harmonia do poder espiritual;
  • Gobin oferece o pão, símbolo do trabalho da humanidade e alimento da vida, ao Messias, que se transforma em alimento para a vida eterna;
  • Alison oferece uma maçã, que tira do regaço, símbolo da vida eterna, ao Messias, que se transforma no remidor do pecado de Eva e naquele que oferece a eternidade; e
  • Aloris oferece uma lanterna, símbolo da luz, ao Messias, que se transforma na nova luz do Mundo.
A cena é fechada por um cão, transportado pelo belo Roger, como símbolo de fidelidade. O enquadramento gótico que envolve a gravura não é, desta vez adornado por profetas, pois a adoração pelos pastores não fazia parte de nenhuma das profecias, mas sim por dois pastores que transportam o seu cajado.
Nota (*): Nomes ficcionados sem qualquer tipo de tradição (F. S. , Les Heures Gothiques et la Littérature Pieuse, p. 50) ou tirados de um qualquer Auto de Pastores pertencente à literatura medieval francesa (Cf. Alfred Pollard, Early Illustratet Books, p. 195). Agradeço a Luís Barata o ter-me recordado este livro. A fonte dos nomes foi, possivelmente, devorada pela sede devastadora do Índex.

5 comentários:

  1. Primeiro tinha escrito:
    Roger oferece a flauta, símbolo do divertimento, ao Messias, que acaba com o sofrimento a que a humanidade fora condenada em virtude do pecado original;

    Ana escreveu-me a dizer: "Desculpe a minha ousadia mas só esta sua afirmação é que não me satisfaz"

    Só acaba se os fiéis seguirem a palavra do Senhor.
    Vejo mais a flauta como louvor / obediência / Fidelidade / agradecimento do que a conotação que lhe dá.O Messias é a promessa mas não salva sem contrapartidas. Há o livre arbítrio na escolha entre o bem e o mal,,, Louvor??
    (As flautas eram comumente usadas nos cultos da fertilidade e cenários seculares).

    Tentei a nova forma... Podem e devem ajudar com comentários

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  2. Jad,
    Gosto mais desta sua forma, sem dúvida alguma:

    "Roger oferece a flauta, símbolo de encantamento, ao Messias, que se transforma na harmonia do poder espiritual";

    Mas não tenho os conhecimentos de simbologia à sua altura... que embaraço!
    :)
    Ana

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  3. Para já, só me atrevo a sugerir uma modificação à alusão que usa no final, a respeito do Index. "Devorar" e "sede", não me soa em conjunto :). Sugiro a mudança do verbo ou passar a última a fome (ou outro sinónimo que ache mais elegante).
    Manifestamente, os nomes dos pastores não serão arbitrários, devendo ter uma relação com um texto. Quando não, nenhuma utilidade teriam, o que não é de presumir.

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  4. Obrigado JP. Vou olhar para a frase.

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  5. Sinceramente, estou mesmo a pedir ajuda. O terreno é, para mim, muito pouco seguro. Não é nada de "falsa modéstia".

    "O que é a modéstia senão uma humildade hipócrita pela qual um homem pede perdão por ter as qualidades e os méritos que os outros não tem!"

    Arthur Schopenhauer

    Quando peço ajuda é porque não sei ou porque não tenho os pés na terra. Não tenho colocado o resto das horas aqui. Essas não me tem causado problemas, até agora.

    Obrigado

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