" Assola o país uma pulsão coloquial que põe toda a gente em estado frenético de tagarelice, numa multiplicação ansiosa de duos, trios, ensembles, coros. Desde os píncaros de Castro Laboreiro até ao Ilhéu de Monchique fervem rumorejos, conversas, vozeios, brados que abafam e escamoteiam a paciência de alguns, os vagares de muitos e o bom senso de todos. O falatório é causa de inúmeros despautérios, frouxas produtividades e más-criações.
Fala-se, fala-se, fala-se, em todos os sotaques, em todos os tons e decibéis, em todos os azimutes. O país fala, fala, desunha-se a falar, e pouco do que diz tem o menor interesse. O país não tem nada a dizer, a ensinar, a comunicar. O país quer é aturdir-se. E a tagarelice é o meio de aturdimento mais à mão.
Falam os médicos, os notários, os empreiteiros, os varredores, os motoristas, os professores e toda a lista de profissões da estatística e não há corporação que fique de fora neste zunzunar do paleio, vendedores de automóveis, mediadores de seguros, sapateiros que passam a vida a cantar, empregados de mesa, agentes da autoridade, doentes dos hospitais, operadores imobiliários, empregados forenses, e também engenheiros, sem abrigo, vagabundos, telefonistas, padeiros, patinadores, engraxadores e vândalos. Imigrantes provindos de países sombrios aprendem aqui a soltar as línguas, aderem ao velho ofício de dar à taramela, por isto e por aquilo, por tudo, nada. Passam-se dias, meses, anos, remoem as depressões, adejam os perigos e o país a falajar, falajar, falajar. "
" ( ... ) Como é sabido, os militares oficiais superiores são, entre os cidadãos que compõem uma vasta classe média, os mais ampla e diversificadamente relacionados. É preciso um tipo que faça um pão especial? Lá se desencanta em Trás-os-Montes alguém que foi cabo na segunda companhia em 1969 e que terá muito prazer em fazer um jeito ao nosso coronel. É preciso um advogado por causa de uma questão de partilhas? Ocorre logo aquele rapazito enfezado, de óculos, muito medroso, que era alferes de Intendência e que agora advoga em Lisboa e que até vai à televisão. Um coronel quer instalar uma piscina? Há uma multidão de capitães, majores, brigadeiros, engenheiros, médicos, professores que estão ávidos por ajudar. Todos têm experiência, todos têm informação, todos têm opiniões, todos sem atropelam. E as recomendações que o coronel Bernardes foi recebendo, pelo telefone, acabaram por dar naquilo a que chama, nas comunicações da tropa, « empastelamento » da informação. Uns recomendaram outros, não poucos intrigaram contra terceiros. As opiniões eram todas diferentes. Mas havia uma universal vontade de ajudar. Tanta, que um major chegou a telefonar de Nova Iorque, às quatro da manhã, provocando um reflexo automático do coronel, de atarantada pistola-metralhadora na mão, enquanto Maria das Dores rogava pragas. (...) pg. 64-65
- Mário de Carvalho, Fantasia para dois coronéis e uma piscina, Caminho, 2003.
Gostei imenso.
ResponderEliminarM.
Também eu.
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