sábado, 31 de outubro de 2009

A.S. : Escolhas Pessoais IV

Cecília Meireles

Sem estridência nenhuma, e através de uma escrita serena, umas vezes quase prosaica (Poemas Escritos na Índia), outras em musicalidade transformada, a poesia de Cecília Meireles, apesar de ter rasado algumas correntes literárias da sua época, distingue-se pela sua singularidade. É, possivelmente, a mais portuguesa dos poetas brasileiros, pela sua escrita e pelos seus temas. Ao facto não estará de todo alheia uma avó materna de origem açoriana que a criou e a quem dedicou sentidas elegias (“Abre o túmulo e olha-me: / qual de nós morreu mais.”). Algum humor perpassa, às vezes ( “… Moscas investigam o abismo / das orelhas hirtas dos burros. …”- poema ALCOBAÇA); mas, o mais significativo da sua poesia é uma fina sensibilidade ao mundo e à natureza, assim como, também, os temas sobre a solidão e o amor que são tratados de uma forma sempre discreta, mais sugerida que expressa: “ …Aqui está minha herança – este mar solitário / que de um lado era amor e, do outro esquecimento.”.
Transcrevo, de Cecília Meireles, o meu poema de eleição:

MOTIVO

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
Não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
No vento.

Se desmorono ou se edifico,
Se permaneço ou me desfaço,
- não sei, não sei. Não sei se fico
Ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
- mais nada.
Post de Alberto Soares

3 comentários:

  1. Gosto imenso de Cecília Meireles e deste seu «poema de eleição»: «Sei que canto. E a canção é tudo. / Tem sangue eterno a asa ritmada. / E um dia sei que estarei mudo: / - mais nada.»
    M.

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  2. Voltei para lhe dizer que este poema também é para pensar. É belo pela sua simplicidade, clareza e frescura.
    Ana

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