domingo, 22 de novembro de 2009

"No céu também se sorria muito" * - Saramago

Já se escreveu muito sobre Caim de José Saramago. Exponho a minha visão sobre o livro, à procura de outras ideias.
A narrativa do livro prende o leitor.

“Disse então o senhor, Tendo conhecido o bem e o mal, o homem tornou-se semelhante a um deus, agora só me faltaria que fosses colher também do fruto da árvore da vida para deles comeres e viveres para sempre, não faltaria mais, dois deuses num universo, por isso te expulso a ti e a tua mulher deste jardim do éden…” *
x
Hyeronimus Bosch, O Jardim das Delícias, com os 2 painéis volantes fechadosÓleo sobre madeira, 220 × 195 cm, Museu do Prado, Madrid, Espanha

O livro revela um excelente exercício de escrita e torna-se interessante por narrar as preocupações do homem perante o conhecimento, o bem e o mal, a crença no homem instintivo, no Deus vingativo e amoral. Enfim, regressamos às origens do homem, ao Antigo Testamento, recriado por Saramago num espaço sem espiritualidade.

“No céu também se sorria muito, mas sempre seraficamente e com uma ligeira expressão de contrariedade, como quem pede desculpa por estar contente”. *

Saramago é contemporâneo de Sartre, Camus e Boris Vian, inspiradores da supremacia humana sobre a essência da vida. Imbuído, possivelmente, da mentalidade existencialista de Marx (avant la lettre), Nietzsche, Dostoiévski e do próprio Sartre ele espelha-a em Caim.

“A história dos homens é a história dos seus desentendimentos com deus, nem ele nos entende a nós, nem nós os entendemos a ele”. *

Penso que estas três proposições correspondem à incompreensão de Saramago perante o paradigma da justiça divina e da incompreensão do mundo celeste.
Saramago inverte a história e de Caim faz nascer caim. Arrisco a afirmar que no estilo há uma certa influência de Dante (note-se sem a poesia da divina Comédia), aplicada na figura de caim, o viajante que visualiza o futuro e o passado.
Saramago criou uma ordem/caos, para pôr em causa a ordem divina. O bem não vence. O mal acaba por vencer ao desviar a linha dos acontecimentos e ao abrir uma eterna discussão entre o homem e deus.

Em suma, gostei do livro como exercício de escrita e de imaginação mas continuo a julgar a posição de Saramago arrogante e desrespeitadora para com os que crêem.

No céu também se sorria muito ...

José Saramago, Caim, Lisboa: Caminho, 2009, p. 28, 91.

Saramago estará insatisfeito com a vida? Encarará bem a morte? Porque é que a sua arrogância o levou a considerar a Bíblia o livro dos disparates? Tomar-se-à por deus? Não encontro respostas.

24 comentários:

  1. Ana, o que quer dizer com «mentalidade existencialista de Marx»?

    ResponderEliminar
  2. MR,
    Talvez tenha sido abusiva ao utilizar a expressão "mentalidade existencialista" e deveria ter colocado "avant la lettre", uma vez que esta surge no século XX, mas, a meu ver o materialismo de Marx vai influenciar o existencialismo no século XX. Marx, influenciado pelo materialismo de Feueurbach, crítica a religião e cria o fundamento para o existencialismo.

    ResponderEliminar
  3. Vou colocar "avant la lettre", obrigada por me fazer reflectir.

    ResponderEliminar
  4. Ana,
    Obviamente que Marx influencia toda a filosofia posterior.
    Quanto aos existencialistas, basta pensarmos em Gabriel Marcel e, por outro lado, na concepção "determinista" (se assim posso dizer) da história que eles têm, mesmo Sartre.
    Saramago está nos antípodas do existencialismo.

    ResponderEliminar
  5. Ana,
    Desculpe, tinha jurado não voltar a isto, mas é mais forte que eu.
    Diz que Saramago tem uma posição «arrogante» - dou de barato - «e desrespeitadora para com os que crêem». Independentemente de eu concordar ou não, por que não o pode fazer?
    A história está cheia de homens que o fizeram, em vários domínios, e que são hoje muito considerados.
    Ainda não li o livro. É o próximo.

    ResponderEliminar
  6. Não sou uma indefectível de Saramago. Como escritor, gostei (bastante) de três dos seus livros. Como pessoa... não me pronuncio aqui.

    ResponderEliminar
  7. MR,
    Claro que o pode fazer! Do mesmo modo que ele o pode fazer, também eu posso atacar a posição dele.

    Em relação a Gabriel Marcel e ao "determinismo" da história estou totalmente de acordo.
    Julgo que situei Saramago como o arquétipo do existencialismo, ao colocá-lo junto de pensadores seus contemporãneoos.
    Bom domingo :)

    ResponderEliminar
  8. Desculpe MR,
    Mas tenho que fazer esta pergunta:
    -Não deveriamos admirar os livros sagrados como testemunhos históricos?
    Só tenho a Bíblia e o Alcorão mas gostaria de ter todos os livros sagrados que orientam a vida dos homens.

    O que me custou foi a depreciação de Saramago. A pessoa pública quando diz certas afirmações está sujeita a críticas. Como pessoa na sua intimidade (casa) não conheço Saramago. No entanto, orgulho-me dele pertencer aos laureados com o Nobel.

    ResponderEliminar
  9. Quando falei de Saramago como pessoa, foi como pessoa pública e a sua acção como subdirector do Diário de Notícias - lamentável, do meu ponto de vista.
    Claro que as afirmações que faz (ou, neste caso, fez) podem e devem ser criticadas. Não me parece é que o devam ser em termos como «desrespeitadora para com os que crêem».
    Só uma coisa: Gabriel Marcel nasceu em 1889, Sartre em 1905 e Saramago em 1922.

    ResponderEliminar
  10. Ana, não queria entrar nesta questão. Mas.... já estou a entrar e a sair...
    Quando escreve "Não deveriamos admirar os livros sagrados como testemunhos históricos?" Acha mesmo que eles são testemunhos históricos? Ou são testemunhos de uma fé?.
    Ou acha que tudo o que vem na Bíblia (Antigo Testamento) foi verdade?
    J.

    ResponderEliminar
  11. E já agora quem é que diz que a Bíblia é o Livro dos Disparates?
    O que está escrito no livro é que aquela citação é tirada do Livro dos Disparates... Mas como já lhe disse, a citação não é da Bíblia... é uma pseudo citação. É uma inspiração em... Vai dizer-me que um jornalista escreveu que ele disse isso numa entrevista.... será que disse?
    J.

    ResponderEliminar
  12. J,
    Julgo que os livros sagrados são testemunhos históricos de uma fé.

    Não acredito que seja verdade o que está escrito no Antigo Testamento mas, acredito que a atmosfera descrita nos permite observar o espaço e o tempo em que ocorreram mesmo que não seja 100% fiável.
    Não se ria da percentagem ou do quantificável, "please"...

    ResponderEliminar
  13. Rectificação:
    não acredito que tudo o que está no Antigo testamento seja verdade.

    ResponderEliminar
  14. Ana diz: "acredito que a atmosfera descrita nos permite observar o espaço e o tempo em que ocorreram mesmo que não seja 100% fiável".
    Pergunto: Qual é, para si a % de fiável no livro do "Génesis", por exemplo. E digo este porque é o primeiro... Mas posso perguntar o mesmo do 2.º, etc....

    ResponderEliminar
  15. Eu sabia que a percentagem ia dar confusão!

    Bom, vejamos, o Génesis é poesia (outra provocação), é uma explicação para a origem do universo e do homem, criado pelo homem, já dá algumas pistas.

    Não acredito nesta origem do universo. Já tentei conversrar com um jesuíta (cientista) sobre isto. Tentei levá-lo a ver a contradição, uma vez que era cientista, mas ele nunca entrou em contradição, apenas me disse pára-se aqui e agora é uma questão de fé.
    Pegou logo no Génesis... ah...A Bíblia foi escrita pelos homens alguns dados têm que ser retirados!

    Não consigo encontrar mais explicações, gostava de ter fé sem dúvidas. Gostava de poder quantificar mas também não posso!

    João ganhou este debate! Contudo a religião, o homem religioso é muito importante para a História. A religião através da estrutura da Igreja unificou os povos, instruiu-os, auxiliou o poder temporal na unificação e criação duma ética. Lutou-se pela fé (e pela riqueza)e assim nasceu Portugal, não tenho mais potência...

    ResponderEliminar
  16. Ainda uma frase do texto de Ana: "Tomar-se-á por deus? Não encontro respostas."
    Não, Saramago não se pode tomar por "deus" (em minúsculo, como escreve), porque para Saramago "deus" não existe e ele (Saramago) existe!
    J.

    ResponderEliminar
  17. J,
    Precisamente, por Saramago ser existencialista deus está em minúscula. Pensei nos deuses do Olimpo, deuses que influenciaram as artes, neste caso um escritor. Por isso, não entrei em contradição. :)

    ResponderEliminar
  18. Diz um popular, que leu mal e em diagonal o "Ensaio sobre a cegueira" e ainda para mais confunde os títulos dos livros:

    "- Não batam mais no ceguinho!"

    ResponderEliminar
  19. Ana, ainda mata Saramago do coração com essa de ele ser exencialista.

    ResponderEliminar
  20. Caro anónimo,
    Não quero matar o Saramago mas gostava que ele me respondesse às minhas questões.
    Comecei a ler o "Ensaio sobre a Cegueira" mas enfastiou-me, quem fala em cegueira está mais que preparado para levar, embora, não queira bater em tal vulto.
    Gostei de Caim, enquanto narrativa e exercício de escrita.
    A polémica à volta do livro foi se calhar a melhor forma de o divulgar. :)

    ResponderEliminar
  21. Oxalá façam a edição em braille-
    sonha o cego.

    ResponderEliminar
  22. Sim, Saramago pode ter um ataque de coração se souber que lhe chamam existencialista! Existencialista ...
    J.

    ResponderEliminar
  23. Ana: nem por "deus" nem por "Deus"!
    J.

    ResponderEliminar
  24. Paz por Deus!
    - disse um popular.

    ResponderEliminar