sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Verdades inconvenientes







Miguel Sousa Tavaresem discurso directo e sobre algumas verdades inconvenientes:







Segunda-feira passada, a meio da tarde, faço a A-6, em direcção a
Espanha e na companhia de uma amiga estrangeira; quarta-feira de
manhã, refaço o mesmo percurso, em sentido inverso, rumo a Lisboa.
Tanto para lá como para cá, é uma auto-estrada luxuosa e fantasma. Em
contrapartida, numa breve incursão pela estrada nacional, entre
Arraiolos e Borba, vamos encontrar um trânsito cerrado, composto
esmagadoramente por camiões de mercadorias espanhóis. Vinda de um país
onde as auto-estradas estão sempre cheias, ela está espantada com o
que vê:

- É sempre assim, esta auto-estrada?

- Assim, como? Deserta, magnífica, sem trânsito?

- É, é sempre assim.

- Todos os dias? Todos, menos ao domingo, que sempre tem mais gente.

- Mas, se não há trânsito, porque a fizeram? Porque havia dinheiro
para gastar dos Fundos Europeus, e porque diziam que o desenvolvimento
era isto.

- E têm mais auto-estradas destas? Várias e ainda temos outras em
construção: só de Lisboa para o Porto, vamos ficar com três. Entre S.
Paulo e o Rio de Janeiro, por exemplo, não há nenhuma: só uns
quilómetros à saída de S. Paulo e outros à chegada ao Rio. Nós vamos
ter três entre o Porto e Lisboa: é a aposta no automóvel, na poupança
de energia, nos acordos de Quioto, etc. - respondi, rindo-me.

- E, já agora, porque é que a auto-estrada está deserta e a estrada
nacional está cheia de camiões? Porque assim não pagam portagem.

- E porque são quase todos espanhóis? Vêm trazer-nos comida.

- Mas vocês não têm agricultura? Não: a Europa paga-nos para não ter.
E os nossos agricultores dizem que produzir não é rentável.

- Mas para os espanhóis é? Pelos vistos...

Ela ficou a pensar um pouco e voltou à carga:

- Mas porque não investem antes no comboio? Investimos, mas não resultou.

- Não resultou, como? Houve aí uns experts que gastaram uma fortuna a
modernizar a linha Lisboa-Porto, com comboios pendulares e tudo, mas
não resultou.

- Mas porquê? Olha, é assim: a maior parte do tempo, o comboio não
'pendula'; e, quando 'pendula', enjoa de morte. Não há sinal de
telemóvel nem Internet, não há restaurante, há apenas um bar infecto
e, de facto, o único sinal de 'modernidade' foi proibirem de fumar em
qualquer espaço do comboio. Por isso, as pessoas preferem ir de carro
e a companhia ferroviária do Estado perde centenas de milhões todos os
anos.

- E gastaram nisso uma fortuna? Gastámos. E a única coisa que se
conseguiu foi tirar 25 minutos às três horas e meia que demorava a
viagem há cinquenta anos...

- Estás a brincar comigo!

- Não, estou a falar a sério!

- E o que fizeram a esses incompetentes? Nada. Ou melhor, agora vão
dar-lhes uma nova oportunidade, que é encherem o país de TGV:
Porto-Lisboa, Porto-Vigo, Madrid-Lisboa... e ainda há umas ameaças de
fazerem outro no Algarve e outro no Centro.

- Mas que tamanho tem Portugal, de cima a baixo? Do ponto mais a
norte ao ponto mais a sul, 561 km.

Ela ficou a olhar para mim, sem saber se era para acreditar ou não.

- Mas, ao menos, o TGV vai directo de Lisboa ao Porto? Não, pára em
várias estações: de cima para baixo e se a memória não me falha, pára
em Aveiro, para os compensar por não arrancarmos já com o TGV deles
para Salamanca; depois, pára em Coimbra para não ofender o prof. Vital
Moreira, que é muito importante lá; a seguir, pára numa aldeia chamada
Ota, para os compensar por não terem feito lá o novo aeroporto de
Lisboa; depois, pára em Alcochete, a sul de Lisboa, onde ficará o
futuro aeroporto; e, finalmente, pára em Lisboa, em duas estações.

- Como: então o TGV vem do Norte, ultrapassa Lisboa pelo sul, e depois
volta para trás e entra em Lisboa?

- Isso mesmo.

- E como entra em Lisboa? Por uma nova ponte que vão fazer.

- Uma ponte ferroviária? E rodoviária também: vai trazer mais uns
vinte ou trinta mil carros todos os dias para Lisboa.

- Mas isso é o caos, Lisboa já está congestionada de carros!

- Pois é.

- E, então? Então, nada. São os especialistas que decidiram assim.

Ela ficou pensativa outra vez. Manifestamente, o assunto estava a fasciná-la.

- E, desculpa lá, esse TGV para Madrid vai ter passageiros? Se a
auto-estrada está deserta...

- Não, não vai ter. Não vai? Então, vai ser uma ruína!

- Não, é preciso distinguir: para as empresas que o vão construir e
para os bancos que o vão capitalizar, vai ser um negócio fantástico! A
exploração é que vai ser uma ruína - aliás, já admitida pelo Governo -
porque, de facto, nem os especialistas conseguem encontrar passageiros
que cheguem para o justificar.

- E quem paga os prejuízos da exploração: as empresas construtoras?
Naaaão! Quem paga são os contribuintes! Aqui a regra é essa!

- E vocês não despedem o Governo? Talvez, mas não serve de muito:
quem assinou os acordos para o TGV com Espanha foi a oposição, quando
era governo...

- Que país o vosso! Mas qual é o argumento dos governos para fazerem
um TGV que já sabem que vai perder dinheiro?

- Dizem que não podemos ficar fora da Rede Europeia de Alta Velocidade.

- O que é isso? Ir em TGV de Lisboa a Helsínquia?

- A Helsínquia, não, porque os países escandinavos não têm TGV. Como?
Então, os países mais evoluídos da Europa não têm TGV e vocês têm de
ter?

- É, dizem que assim entramos mais depressa na modernidade.

Fizemos mais uns quilómetros de deserto rodoviário de luxo, até que
ela pareceu lembrar-se de qualquer coisa que tinha ficado para trás:

- E esse novo aeroporto de que falaste, é o quê?

- O novo aeroporto internacional de Lisboa, do lado de lá do rio e a
uns 50 quilómetros de Lisboa.

- Mas vocês vão fechar este aeroporto que é um luxo, quase no centro
da cidade, e fazer um novo?

- É isso mesmo. Dizem que este está saturado.

- Não me pareceu nada...

- Porque não está: cada vez tem menos voos e só este ano a TAP vai
cancelar cerca de 20.000. O que está a crescer são os voos das
low-cost, que, aliás, estão a liquidar a TAP.

- Mas, então, porque não fazem como se faz em todo o lado, que é
deixar as companhias de linha no aeroporto principal e chutar as
low-cost para um pequeno aeroporto de periferia? Não têm nenhum
disponível?

- Temos vários. Mas os especialistas dizem que o novo aeroporto vai
ser um hub ibérico, fazendo a trasfega de todos os voos da América do
Sul para a Europa: um sucesso garantido.

- E tu acreditas nisso?

- Eu acredito em tudo e não acredito em nada. Olha ali ao fundo: sabes
o que é aquilo?

- Um lago enorme! Extraordinário!

- Não: é a barragem de Alqueva, a maior da Europa.

- Ena! Deve produzir energia para meio país!

- Praticamente zero.

- A sério? Mas, ao menos, não vos faltará água para beber!

- A água não é potável: já vem contaminada de Espanha.

- Já não sei se estás a gozar comigo ou não, mas, se não serve para
beber, serve para regar - ou nem isso?

- Servir, serve, mas vai demorar vinte ou mais anos até instalarem o
perímetro de rega, porque, como te disse, aqui acredita-se que a
agricultura não tem futuro: antes, porque não havia água; agora,
porque há água a mais.

- Estás a dizer-me que fizeram a maior barragem da Europa e não serve para nada?

- Vai servir para regar campos de golfe e urbanizações turísticas, que
é o que nós fazemos mais e melhor.

Apesar do sol de frente, impiedoso, ela tirou os óculos escuros e
virou-se para me olhar bem de frente:

- Desculpa lá a última pergunta: vocês são doidos ou são ricos?

- Antes, éramos só doidos e fizemos algumas coisas notáveis por esse
mundo fora; depois, disseram-nos que afinal éramos ricos e desatámos a
fazer todas as asneiras possíveis cá dentro; em breve, voltaremos a
ser pobres e enlouqueceremos de vez.

Ela voltou a colocar os óculos de sol e a recostar-se para trás no
assento. E suspirou:

- Bem, uma coisa posso dizer: há poucos países tão agradáveis para
viajar como Portugal! Olha-me só para esta auto-estrada sem ninguém!






4 comentários:

  1. Bastante reaccionário este artigo do Miguel Sousa Tavares. Não são verdades inconvenientes. São "meias-verdades" camufladas.

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  2. Estava a ver que nunca mais acabava.
    Concordo com o comentário do Jad.

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  3. Lembram-se como se andava na ponte Vasco da Gama há uns anos? E agora?

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  4. Reaccionário?!Já tinha saudades desse epíteto. Melhor só "fascista".Cresci a ouvir os dois quase sempre a despropósito e por tudo e por nada,o que só os desvalorizou.

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