Ideia da vocação
A que coisa é fiel o poeta? A pergunta envolve certamente qualquer coisa que não pode ser fixada em proposições ou em profissões de fé memorizadas. Mas como se pode conservar uma fidelidade sem nunca a formular, nem sequer a si próprio? Ela teria sempre de sair da mente no próprio instante em que se afirma.
Um glossário medieval explica assim o sentido do neologismo dementicare ( esquecer ), que tinha passado a ser usado para substituir o termo literário oblivisci: dementicastis: oblivioni tradidistis. Aquilo que se esqueceu não foi simplesmente anulado, posto de parte: foi consignado ao esquecimento. O esquema desta informulável tradição foi exposto, na sua forma mais pura, por Hölderlin quando, nas notas à tradução do Édipo de Sófocles, escreve que o deus e o homem, " para que não desapareça a memória dos olímpicos, comunicam na forma, esquecida de tudo, da infidelidade".
A fidelidade àquilo que não pode ser tematizado, mas também não simplesmente silenciado, é uma traição de natureza sagrada na qual a memória, girando subitamente como um redomoinho, descobre a frente de neve do esquecimento. Este gesto, este abraço invertido da memória e do esquecimento, que conserva intacta, no seu centro, a identidade do que é imemorial e inesquecível, é a vocação.
-Giorgio Agamben, A Ideia da prosa, tradução, prefácio e notas de João Barrento, Cotovia, 1999.
É curioso,porque à mesma hora e no "sítio do costume",estava eu a lançar qualquer coisa relacionada...
ResponderEliminarImodestamente (da minha parte) diria : "les beaux esprits se rencontrent..."
Correndo o risco de cometer uma heresia, e apesar de nunca ter lido o original, confesso que a tradução não me entusiasmou...
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