quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Homenagem a Cesário Verde antes que o dia acabe!

Tinha em rascunho este poema porque não encontrei O Livro de Cesário Verde. Neste momento, o meu escritório está em estado caótico com livros por todo o lado sem uma arrumação sistemática. Não tive um bocadinho para procurar referências. Como gosto muito deste poema decidi colocá-lo na mesma, apesar de ter sido retirado da net.

O Sentimento dum Ocidental

I

Avé-Marias


Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.


O céu parece baixo e de neblina,
O gás extravasado enjoa-me, perturba;
E os edifícios, com as chaminés, e a turba
Toldam-se duma cor monótona e londrina.


Batem carros de aluguer, ao fundo,
Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!
Ocorrem-me em revista, exposições, países:
Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!


Semelham-se a gaiolas, com viveiros,
As edificações somente emadeiradas:
Como morcegos, ao cair das badaladas,
Saltam de viga em viga os mestres carpinteiros.


Voltam os calafates, aos magotes,
De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos;
Embrenho-me, a cismar, por boqueirões, por becos,
Ou erro pelos cais a que se atracam botes.


E evoco, então, as crónicas navais:
Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado!
Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!
Singram soberbas naus que eu não verei jamais!


E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!
De um couraçado inglês vogam os escaleres;
E em terra num tinir de louças e talheres
Flamejam, ao jantar alguns hotéis da moda.


Num trem de praça arengam dois dentistas;
Um trôpego arlequim braceja numas andas;
Os querubins do lar flutuam nas varandas;
Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas!


Vazam-se os arsenais e as oficinas;
Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;
E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,
Correndo com firmeza, assomam as varinas.


Vêm sacudindo as ancas opulentas!
Seus troncos varonis recordam-me pilastras;
E algumas, à cabeça, embalam nas canastras
Os filhos que depois naufragam nas tormentas.


Descalças! Nas descargas de carvão,
Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;
E apinham-se num bairro aonde miam gatas,
E o peixe podre gera os focos de infecção!

(...)
Cesário Verde

4 comentários:

  1. MR,
    Podia tê-lo colocado. Ficaria contente em vê-lo por aqui e procuraria outro.

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  2. É interessante ver,através do poema,o percurso de Cesário Verde desde a loja de ferragens do Pai, pelo Arsenal. Chiado, etc. David Mourão-Ferreira tem um texto muito interessante sobre isto.

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  3. Não conheço esse texto de David Mourão-Ferreira. Muito Obrigada.

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  4. Obrigada MR, pela correcção do título. :):)

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