segunda-feira, 14 de junho de 2010

Mãe Roma


Via Babuino

«Há cidades que nos voltam as costas, sem chegarem sequer a olhar para nós. Há outras que nos sacodem a mão, cordialmente, num sóbrio shake-hand de boas-vindas, e que depois lá seguem para os seus afazeres, os seus divertimentos, os seus labirintos em que nunca haveremos de penetrar. Há também as que discutem connosco, logo desde o primeiro encontro, mas que por isso mesmo se nos tornam indispensáveis. E as que nos provocam; as que nos irritam; as que se divertem à nossa custa. Há ainda as que sabem de cor os mais secretos dialectos do desejo – para que nos deixarem enrodilhados, insatisfeitos e melancólicos, na madrugada de frios arrabaldes. Há todavia, pelo contrário, as que nos vestem de música e de luz; que nos fazem lembrar, a cada passo, as irmãs mais velhas que não tivemos; que nos escutam com atenção – quando ficamos em silêncio – nas esplanadas do crepúsculo. Mas há apenas uma, entre todas, longe ou perto, que maternalmente nos estende os braços.
«Compreendo hoje bastante bem o terror de Jung, que sempre temeu empreender uma viagem a Roma e que nunca chegou a realizá-la. "Não me sentia com envergadura", confessou ele, "para suportar a impressão que esta cidade exerceria sobre mim". Custava-lhe admitir, por outro lado, que as pessoas fossem a Roma, como vão a Paris ou a Londres, apenas em busca de um prazer estético. […]
«Mas como hei-de explicar, perante mim próprio, a inquietante fascinação que me produzem as formas elípticas de algumas destas praças, as cúpulas e as abóbadas da maior parte destes templos, os vermelhos vivos e os ocres quentes de que estão pintados tantos destes prédios? Sento-me na esplanada de um café na Via Nazionale, e basta-me contemplar o alto de um edifício, onde essas duas cores tão depressa se fundem uma na outra, para imediatamente experimentar uma estranha sensação de paz e de segurança, um halo de intimidade, uma espécie de abrigo contra o frenético movimento que vai na rua. Mais tarde, na Piazza Navona, surpreendo-me a girar como que dentro de um aquário, a sentir-me incapaz de me arredar dali… E já por mais de uma vez, chegando à Piazza del Popolo pela Via del Babuino ou pela Via del Corso, dei comigo hesitante, quase pusilânime, sem me decidir a transpor a Porta del Popolo – que foi em tempos (que é hoje ainda) uma das saídas de Roma –, como se transpô-la significasse um arremedo de nascimento e absurdamente eu me recusasse a nascer. Mas em San Pietro, primeiro no regaço formado pelas altas colunatas do Bernini e depois no dilatado interior do templo, é que melhor se sente ainda a vocação maternal da Cidade Eterna. […]»

David Mourão-Ferreira
In: Discurso directo: crónicas. Lisboa: Guimarães, 1969, p. 83-85

3 comentários:

  1. Só não subescrevo a última frase. Roma, deixa sempre saudades...
    E agora até tinha água do poço para beber...:)

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  2. Idem. E talvez por isso nem houve tempo para lá ir.

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  3. Prosa de primeira água!
    Gostei muito, obrigado.

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