segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Um quotidiano centenário (V)


Moisés tinha solene embirração aos telefones. Não se entendia bem com o diabólico engenho e evitava falar por ele. Para mais, aquele estava muito alto, a sua estatura era pequena e tinha de estar em bicos dos pés para chegar ao bocal... Concentrou todas as atenções no ouvido, ensaiou as palavras que tinha a dizer e esperou....

Ao fim de meia hora já não se sustinha nos bicos dos pés, mudou o canudo para o outro ouvido e continuou à espera. Ouvia conversas diversas, frases entrecortadas e até de mistura parecia distinguir os ais da sua Ludovina, juntamente com o ruído seco das metralhadoras e o ribombar do canhão...

- Só se não está ninguém? - reflectiu ele a meia voz - Está lá?
- Ora até que enfim que se resolve! Já perguntei três vezes que número desejava - disse-lhe dentro do ouvido, uma voz feminina.
- Queira desculpar, mas não julgava que fosse comigo...
_ Que número deseja?

Moisés tossiu, fechou os olhos e começou:
- Aqui é o Moisés que fala, oficial da Fazenda Pública; calcule Vossa Excelência que minha mulher... está....... Está lá?.. Está lá...
Já não estava. Moisés percebeu que estava só. Esperou e atreveu-se a tocar com o dedo no aparelho que, indiscreto, tocou uma campainha.

- Não esteja a tocar... não demore... Que número deseja?
- Como ia dizendo...
- O senhor está a brincar? Com o serviço desta maneira! Diga para onde deseja falar...

Sentiu-se um grande estalo no ouvido e fez-se silêncio novamente... Moisés não sabia que fazer; seria má criação desligar já ? Esperou mais um bocado e apurando o ouvido conseguiu distinguir algumas frases:
- «Que tomem um automóvel, sigam já para fora... Das
Novidades, ligue-me para o Carmo... Daqui o coronel Albuquerque... O Paulo que não chegue à janela... Ai, filha, isto está medonho para estes lados... Dizem que o Rei vem à frente das tropas para conquistar Lisboa... Não senhor, não há carne limpa e amanhã o talho não abre... Mas que faz o Governo?»

Uma voz mais grossa deu um minuto de esperança a Moisés perdido naquele mar... de comunicações; dizia:
«Pois sim, mas há remédio para tudo...»
- Então fazia favor dizia-me o que deve fazer minha mulher para se aliviar?...
«Quem será o imbecil que se mete nas conversas - dizia a voz grossa - Tá lá? É você? A minha opinião é que está em má posição e por isso deixava as ruas livres, fazia um movimento envolvente e tomava o Rato»...
- Muito obrigado - rematou Moisés, pondo com delicadeza o canudo no seu lugar e ficando a cismar, naquele estranho conselho. «Tomar um rato!?... Deve ser bruxedo e eu não acredito nessas coisas. Nada!

(e continua)

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