domingo, 26 de dezembro de 2010

Livros de cozinha - 40


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A Fazenda O Não me Deixes.

Já aqui falei do livro de Rachel de Queiroz O Não Me Deixes: suas histórias e sua cozinha (São Paulo: Ed. Siciliano, 2000), no qual a escritora, em colaboração com sua irmã, Maria Luísa de Queiroz, conta histórias da sua fazenda no Ceará e deixa-nos as suas receitas preferidas. Hoje volta ao Prosimetron a propósito de


Foto de Michele Burgess.

O PERU

«É o rei das festas. No sertão não se compreende festejo doméstico sem um peru assado. Na festa da cumeeira da casa do Não Me Deixes houve o peru recheado que só chegou para os convidados mais grados. Para a mais gente que acorreu matou-se um carneiro gordo, um bode novo e várias galinhas como complemento. Parte assada no forno, parte de panela com muito molho e o devido pirão. Foi comilança tão vasta que ainda hoje há saudosistas que a recordam.
Sendo, pois, o peru, o rei das festas, recebe ele, com meses de antecedência, tratamento especial. Primeiro na escolha. Há que ser um peru novo mas já no seu tamanho máximo de crescimento: papo amplo, coxas grossas, muita carne de peito.
«Conforme o tamanho da festa será o número de perus cevados. Primeiro ele é vítima de um minucioso exame sanitário, principalmente para checar se não tem o mal-da-pena (secreção que se acumula na base das penas grandes), se está a salvo de cafute ou pragas da mesma natureza. Escolhido, o peru deve ir para a ceva num pequeno chiqueiro de cerca alta de onde ele não possa fugir. Em geral as mulheres aparam as penas grandes de uma das asas, desequilibrando-lhe o voo. O chiqueiro é alto, estreito, rigorosamente limpo. O milho é posto de molho para inchar e ser mais facilmente digerido. Mas como o apetite do peru nem sempre corresponde à pressa de engordá-lo, é submetido a uma operação* que lhe deve ser extremamente desagradável. Tendo ao lado uma tigela de milho inchado, uma mulher o segura pelos pés e pelas asas, enquanto outra lhe abre forçosamente o bico e vai-lhe enfiando goela abaixo punhados e punhados do tal milho. Quando o peru recusa ou se engasga com o alimento, a mulher resolve o engasgo empurrando o milho com o auxílio de uma varinha, adrede preparada.
«Em geral prepara-se o peru sem recheio, simplesmente assado no forno, aberto pelo espinhaço, sem separar as bandas: alguém diria que ele fica de asas espalmadas como uma borboleta. Tem que ficar muito bem assado, por dentro e por fora, com uma bela cor dourada. Esse peru não recheado é acompanhado de uma farofa caprichada, levando todos os miúdos, ovos cozidos, azeitonas, cheiro-verde, etc. O peru recheado é mais raro e normalmente feito em casa de gente rica.

Feijoada de peru
«No dia seguinte ao peru assado, costumo fazer o que chamamos de feijoada de peru.
«O básico para esse prato são as sobras do peru que ficaram da véspera - coxa, asas, miúdos e, principalmente, a carcaça. (Daqueles perus grandes criados na fazenda sempre sobra mais do que se come.)
«A feijoada se constitui, portanto, além de tudo o que sobrou do peru, de mais uma porção de itens novos: paio, linguiça, toucinho de fumeiro.
«O feijão que se emprega é o mulatinho clássico ou feijão-preto, ou até feijão-de-corda. No mais, é fazer como numa feijoada comum: numa panela única, cozinham-se os ingredientes necessários a uma feijoada e mais as sobras do peru assado que se cozinham até delir, isto é, até soltar inteiramente a carne dos ossos. Quando tudo está cozido, retiram-se os ossos que ficaram a descoberto e serve-se com arroz e farofa como qualquer feijoada. Mas o sabor é muito especial.»(p. 103-107)

Talvez experimente esta receita porque sou uma apaixonada de feijoada à brasileira e parece-me um boa maneira de nos livrarmos do maldito peru.

* Diria melhor: tortura. Qualquer dia temos a Protecção dos Animais à perna.

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