terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Dos Almanaques - 16


Lucas Cranach, o Velho - Adão e Eva, 1528
Florença, Galleria degli Uffizi

«Em todos os tempos houve mistificações e houve mistificadores. Em todos os tempos a Mentira guerreou a Verdade e não raro a levou de vencida. A coisa vem de longe. Vem do pai Adão e da mãe Eva. À Verdade também se chamou Bem e à Mentira chamou-se Mal.
«O Bem e o Mal tiveram como Proteu a faculdade de envergar a fatiota que mais do que seu agrado fosse. O Mal, travestido de serpente, avizinhou-se da Eva e com falinhas mansas que a Astúcia bem conhece, persuadiu-a a comer do fruto da árvore conhecida, para se tornar deusa. Esta árvore era tanto do Mal como do Bem; mas este, que é amigo de viagens, achava-se então ausente.
«A Eva comeu e gostou. Foi chamar o barbudo do Adão que, a instâncias dela, comeu também.
«Deus havia-lhes imposto o preceito de não comerem de tal fruto sob pena de expulsão daquele lugar de delícias. E como a quem promete não falta, aplicou sem demora o castigo.
«Depois vieram as censuras do barbudo à sua metade, a quem ele inculpava da desgraça que a ambos ferira. O Mal, a quem Deus castigou também pela sua soberba, cogitou uma vingança. Dito e feito. Barbeou-se muito bem barbeadinho, e vai com as falinhas mansas que nós já lhe conhecemos, fomentar a discórdia entre o homem e a mulher. Chega-se sorrateiramente ao barbudo e diz-lhe: “ela foi a tua desgraça; com seus afagos embelezou-te e perdeu-te; despreza essa criatura vil; olha que ela é tão vil, que nem sequer alma tem”. O que o Mal queria, e sempre em ódio a Deus, era enganá-los a ambos. Fez templos sumptuosos, e com aromas esquisitos, que inebriam os sentidos, e inauditas melodias que poriam em êxtase a alma de Orpheus, vai para ali trovejar cóleras postiças contra a pobre da mulher. O barbudo, que gostava da oração, mas que gostava também da sua metade, acabou por achar impertinente a insistência do Mal, o jogo do qual veio a descobrir por fim. E empenhou-se quanto pode em subtrair a carne da sua carne às sugestões do maligno.
«Conseguiu-o um pouco. Mas o Mal, que não queria largar a sua presa, resolveu mudar de táctica. E aquela que outrora nem alma tinha, passou a ser por ele idolatrada, e tanto, que até com ofensa da fisiologia lhe chama agora Imaculada. Um embusteiro. [...]»
Adelaide Cabete
In: Almanach Democrático para 1908, Lisboa, 1907, p. 22-23

4 comentários:

  1. Muito interessante este texto, nas suas palavras. Que parecem ingénuas, mas atingem diversos propósitos.

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  2. É de facto interessante! achei graça ao barbudo do Adão.
    Que o bem vença o mal, ou seja a verdade vença a mentira!
    Bom dia MR!

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  3. É de facto interessante! achei graça ao barbudo do Adão.
    Que o bem vença o mal, ou seja a verdade vença a mentira!
    Bom dia MR!

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