segunda-feira, 11 de abril de 2011

O "sentido de responsabilidade" de um assassino


A 11 de Abril de 1961, iniciava-se o processo contra Adolph Eichmann em Jerusalém.

A edição do Süddeutsche Zeitung de terça-feira passada publicou um artigo da autoria de Klaus Bölling que, ao longo da sua vasta carreira de jornalista e publicista, ocupou vários cargos de destaque, entre eles, o de porta-voz do governo de Helmut Schmidt entre 1974 e 1982. Bölling foi um dos observadores que acompanhou o processo há 50 anos, na qualidade de repórter do Westdeutscher Rundfunk. Seguem-se alguns excertos deste artigo numa tradução não literal:


Os observadores alemães do processo encontravam-se numa situação muito particular. Sentados na sala de audiência, fazíamos parte do povo que cometeu o crime. O confronto ininterrupto com Eichmann, os relatos dos torturados que sobreviveram, tornaram-se ainda mais insuportáveis para nós do que para os restantes representantes da imprensa estrangeira. Quem ouvisse, dia após dia, os depoimentos das vítimas e as afirmações estereotipadas de Eichmann que assegurava nunca ter assassinado pessoalmente um judeu, dificilmente conseguia disfarçar o seu repúdio. Pois não fora Eichmann em pessoa que ligou os interruptores nas câmaras de gás. Movido pelo seu “sentido de responsabilidade”, ordenou a deportação dos judeus que viviam nos territórios, ocupados pela Wehrmacht, rumo a Auschwitz. Chocou os juízes e a assistência ao concluir que não actuou enquanto ser humano, mas sim na qualidade de funcionário. No entanto, apenas disse o que, em seu entender, era a verdade.



Seu quociente de inteligência era baixo. Mas Eichmann não era estúpido. Dominava a linguagem do Terceiro Reich na perfeição. No seu depoimento final falava da “revalorização de valores, imposta pelo Estado”. Continuou convencido desses “valores”, até ao enforcamento. Eichmann sofria de um enorme complexo de inferioridade em relação aos seus superiores, tais como, Reinhard Heydrich, Ernst Kaltenbrunner e Heinrich Müller. Poucos livros leu durante a sua vida. Mas um livro não escapou: a obra conhecida de Theodor Herzl, "O Estado Judeu".


Hannah Arendt poderá ter sido criticada pelo seu livro "Eichmann em Jerusalém. Um relato sobre a banalidade do mal", até por amigos seus, como Gershom Scholem. Contudo, há uma conclusão de Arendt que se reveste de tal importância que tenho de citar: “Se Eichmann quisesse estar seguro de si mesmo de não mentir e não sucumbir a uma auto-ilusão, tinha apenas de recuar a um passado não muito longínquo em que, entre ele e seu redor, existia uma harmonia total, pois 80 milhões de alemães estavam protegidos da realidade e facticidade, através de meios que caracterizavam a mentalidade de Eichmann ainda 16 anos após a queda”.

O auto-retrato de Eichmann que se reduzia a uma “roda pequena” numa máquina gigantesca assassina, desmontou-se rapidamente durante o processo. Eichmann foi uma roda grande. No entanto, não se parecia a um monstro. Afinal, porque motivo deveríamos reconhecer nele um criminoso à primeira vista? Eichmann, assim o descrevia Arendt, “não é nenhum Iago, nenhum Macbeth, e seguramente estava longe de decidir, juntamente com um Ricardo III, ser o vilão.


Imagens: o processo contra Eichmann em Jerusalém; Hannah Arendt; Klaus Bölling, anos 70

2 comentários:

  1. Muito interessante, Filipe!
    Lembrar uma época, um assassino, uma visão de um mundo que almejo não regresse.
    Fez-me recordar o "Leitor", um dos livros e filmes que mais me tocaram ultimamente. Há sempre dois lados da História, um é sempre o mal, o outro a cegueira sobre esse mal.
    :)

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  2. "Eichmann em Jerusalém" é uma reportagem-ensaio corajosa. De alguém que assistiu ao julgamento e pensou.

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