segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Marteladas




JAD,

Negar que é um martelo? Bom, mas não seria esse um dos chamados pecados contra o Espírito Santo, contradizer a verdade tida como tal? :)

Lamento desiludir, mas não tenho hipótese alternativa à identificação como um simples martelo, daqueles de pregar. Nem se aproxima do francisque.

Não creio que a primeira possibilidade (por equiparação ao martelo papal) seja viável, quer pela configuração do objecto (dificilmente em prata e de grande dimensão para o fim em vista), quer pelo resultado que a Ana anteviu, de funcionar mais como arma “de misericórdia” do que uma confirmação de um pré-existente óbito. Aliás, a parte traseira, de arrancar pregos, nenhuma utilidade teria para este fim cerimonial.

A leitura icónica destes retratos, sendo um mundo fascinante e rico de simbolismo, cai fora da minha “especialidade”. Atrever-me-ia, contudo, a sugerir que, no martelo e no anel, vemos duas faces do poder e da actividade de um príncipe, no exercício do poder e no recreio da paz.

Antes de passar a alguns comentários sobre o reverso do quadro, que tem outro encanto :), alinhavo aqui algumas observações retiradas do conjunto de informação disponibilizada na página do MET.

Oscilando a identificação do retratado entre o dito Francesco, seu pai Lionello, um tio dando pela graça de Meliaduse, ou algum outro familiar dos Este, os significados para o martelo são múltiplos.

Desde um hipotético “recuerdo” de um ano santo (só poderia ser 1450 ou 1475, mas o martelo também é demasiado tosco e impróprio para abrir uma porta, mais ainda Santa) a um improvável retrato de um Este como Santo Elói (o martelo nem sequer é de ourives), é de notar um trabalho de 1960 que sugere serem as actuais mãos e martelo (suponho que o anel vai no embrulho) uma adição posterior. Um estudo recentíssimo, com base em exames de reflectografia de infravermelho parece confirmar esta possibilidade, ao revelar umas mãos iniciais colocadas em oração.

Em termos de originalidade, para além de Filipe, o Bom, menciona-se o pai, João Sem Medo, retratados com martelinhos deste género. Igualmente são mencionados quadros em Ferrara e em Madrid (Thyssen), no primeiro caso com o mesmo conjunto, de martelo e anel, no segundo só com o anel, os dois da autoria de Francesco del Cossa (precisamente de Ferrara e vivendo por esta altura).

Parece-me muito pouco provável a possibilidade, já aventada, de se tratar de símbolos devocionais à Paixão de Cristo, isto tomando o anel de rubi por uma gota do Sangue derramado no Gólgota.

Sendo a pista “Del Cossa” relevante, a explicação que mais me atraiu, até pela maior dificuldade na sua decifração, seria a de tudo constituir um rebus. Até o reverso.
Não indo tão longe, é de notar que os dois objectos são sustidos na mesma mão.



Observando agora o reverso, ao contrário do que sugeriu o Luís, nada vejo de “gritante”, em termos de posicionamento social, na rica decoração emblemática.
O dito Francesco d’Este (a ser ele o retratado) não era propriamente um outsider familiar, designadamente por decorrência directa da sua ilegitimidade. Ilegítimo tinha sido também o seu pai e, nem por isso, menos sucessível e verdadeiro herdeiro nos “estados” familiares.

A decoração heráldica de quadros foi um dos mais banais usos da heráldica e com as finalidades em geral próprias, de identificação ou de homenagem. Este caso mostra-nos um ordenamento típico do século XV, rico em motos e empresas.

As armas da casa de Este, sem qualquer referência à citada ilegitimidade e sem qualquer diferença pessoal (pelo menos no escudo), apela mais às glórias da linhagem do que à identidade própria do “Francisque”. Ou, a ser verdadeira a ambição, constituindo armas de pretensão à chefia da casa.

Nas armas, o quartel próprio da família (de azul, águia de prata) combina-se com um dos múltiplos casos de acrescentamento, em que foi fértil o Rei Cristianíssimo, muito especialmente em Itália (o mais famoso será o que beneficiou os Medici, por obra de Luís XI).

Neste caso, foi o Rei Carlos VII que, em 1432, atribuiu ao avô de Francesco, Nicola III d’Este, duque de Ferrara, o direito de usar as flores de lis de França, convenientemente diferençadas por uma bordadura dentelada de ouro e vermelho.

Como suportes e no timbre, temos uns quadrúpedes que, na imagem a preto e branco que junto, retirada do Burlington Magazine de 1911 (também a comemorar o centenário ;), estranhamente se divisam melhor como linces de ouro, salpicados de vermelho.



(bom, na imagem original, ao menos, que podem ver em http://www.archive.org/details/burlingtonmagazi18londuoft, ali pela pg. 205, salvo erro).

No caso do timbre, o lince está sentado e tem os olhos vendados. A literatura citada apresenta, não sei com que exactidão, este lince de visão limitada como a empresa de Lionello d’Este, mencionando uma medalha em que consta a legenda Quae vides ne vide. O que vês não vejas.

Supondo que o lince já seria reconhecido como o paradigma da visão aguçada, a limitação dessa capacidade sensorial (voluntária ou involuntária, mas um lince de patas nos olhos é muito inestético) lembra, de algum modo, o nosso português “tempos de coruja, tempos de falcão”. Ou, maquiavelicamente, as virtudes da dissimulação.
Muitos autores interpretam os caracteres pintados no reverso deste quadro em ligação com aquela legenda, mas agora em francês “Voir Tout”. Sempre notarei que, existindo uma conexão entre ambas as versões, parecem afinal contraditórias.

Outra leitura supõe uma dedicatória, “Votre tout”, o que, com a assinatura Francisque, significaria uma oferta do quadro a um terceiro ou uma marca de devoção ao Grão-Duque do Ocidente. Quanto a esta última, não creio, mais depressa admitiria um galanteio, a pessoa certa ou indeterminada.



A leitura destes caracteres é muitas vezes feita em conjunto com as iniciais que, em conjunto com uns laços, ladeiam o timbre. Parecendo inequívoca a leitura como um m e um e, a hipótese mais óbvia é a de marchio estensis, nalguns recalcitrantes servindo para reafirmar a possibilidade de Meliaduse d’Este.

No canto superior esquerdo, em escrita que uniformemente se reconhece como mais tardia, estão as palavras “Non plus Courcelles”. Coincidência ou não, Francesco poderá ter morrido na batalha que, aí perto, em Grandson, se travou em 1476, sendo essa a explicação mais aventada. Na verdade, encontrei uma Corcelles, a 5 km de Grandson. Mas há muito ses neste particular …

Obrigado JAD, obrigado Ana, e o resto do Mundo desculpe esta extensão.

4 comentários:

  1. E com "ses" se vai fazendo a história.

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  2. Muito interessante, JP.
    Não tem nada a agradecer-me pois, a minha observação da tela é meramente estética. Ela causou-me algumas dúvidas pelo antagonismo martelo/cavaleiro, mas até parece que não era assim tão estranho, e achei-a curiosa.

    Eu é que agradeço! :)

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  3. O prazer é sempre nosso. Quanto à inclusão das armas: a verdade é que li, penso que no site do Met ou num dos links que aí se encontram, que há autores que afirmam que foi o retratado, admitindo sempre como boa a hipótese de ser Francesco, que "insistiu" pela sua colocação. "Insistência", expressão que não é minha reitero, que me parece consentânea com as de tantos outros bastardos ao longo da História, ainda que filhos de bastardos como era o caso.

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  4. Sim, sim, deixaste claro que era citação. Parece-me é que esses autores andaram muito distraídos, ao não verem este tipo de "decoração" em muito quadro, sem qualquer correlação com a "legitimidade" do retratado/patrono, etc. E, pelo menos pelas citações que vi, pareceram-me muito presas de preconceitos mais vitorianos do que quatrocentistas, em que ilustres Bastardos se apelidavam mesmo assim e faziam muita gala nisso!

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