Também este ano fiquei entre muitos, aqui. Por óbvia razão somos alinhados de pé, por estantes e prateleiras, de tal forma que quem sai desampara quem ficou. E quem se desampara inclina, o que não é bom, nem para o corpo, nem para o que lhe vai dentro. Portanto, a verticalidade é difícil e, logo se percebe, depende de outros. Pior. Este mês sairam bastantes e eu, menos aprumado, mais inclinado estou a cair também. Agora deito-me entre o nada e a capa de um que também ficou. Para o ano saio!
Esta é a prateleira dos de Natal. Somos de contos, de histórias, com figuras e sem intenção de mais sermos do que de Natal. Como disse - agora somos poucos.
Ao longo do ano, alguns vão chegando e aos que estamos reduzindo a incluinação. Nem tudo o que vem só vem por bem: ficamos mais aconchegados, sim, mas para além desses vêm outros, muitos, arrumando-se por aí, cada qual no seu lugar, a empurrar o lugar de cada um. Dias de vertigem. Por vezes, mudam-nos aos molhos, para cima e para baixo, para lá e para cá, para a direita e para a esquerda - para fora, menos. Assim se me põe o problema. A partir de hoje volta a desesperada certeza que as curtas andanças não me vão tirar de cá, pelo menos durante um ano: o que me aborrece para lá do tédio e me descamba, que já não sou novo. E sempre me arrisco a cair daqui abaixo. É a idade que nos traz este pavor de cair. No outro dia soltaram-se-me algumas folhas.
Os anos vão-me assegurando a raridade mas eu gostaria de não ser tão difícil de encontrar. O atributo vem concedido por um grupo de pessoas que ou nos encontram ou não encontram. Uma delas pára mais por aqui e até sabe se e quando os outros nos querem ou não querem. Chama-se Manuel e é o dono desta casa de livro. Esta noite não está, foi para a Ceia.
Tenho ido para a montra sempre em Dezembro. è um momento glorioso. Não sei se é dos reflexos cintilantes dos olhos de quem vê ou só de poder estar ali, apresentado no meu melhor. Este ano não fui. Será que "alguém" põe a hipótese que eles possam não me querer?
Problemas especiais podem aparecer: ainda que tenha sido sempre muito bem tratado, gostava de estar mais seguro do destino. Já o vi, quando os atam uns aos outros e com outro papel e acabam por ir parar, amontoados, acima de uma balança. Diz-se que vão a peso. Entre nós há quem diga que tal equivale a ser estralhaçado a favor de algo que, afinal, ninguém sabe o que é. Também há quem queira acreditar que parte de cada um de nós renascerá noutra forma, o mesmo espírito, mas já mais implementado. Como quem diz: papel somos, papel seremos. Mas é preciso acreditá-lo e o que sei é que para já cá estou, muito eu, sem ter que me obrigar à ideia que um dia poderei ser canelado ou cartonado a favor de qualquer embalagem, o que iria acabar comigo.
Reconheço que muita coisa me pode ainda acontecer, o caricato até. Ouvem-se muitas histórias neste sítio e há os casos que todos conhecem.
Ainda em Setembro chegou um grupo com uma história que nem é rara. Passaram quatro anos sem que lhes abrissem uma página que fosse. De doze volumes de uma enciclopédia, nem um mereceu sequer a curiosidade do querer saber. Deu-lhes a traça, claro, e logo a começar na capa do primeiro. O tempo sobrou ao bicho e lá foi ele furando páginas e páginas até mesmo ao fim do último deles. Passe o biblionumérico engano, foram ali estragados nada mais de dez - o que não é brincadeira, mesmo em tempos de tantos livros.
A outros acontece sair mais, pavoneados por cima das mesas dos cafés ou debaixo dos braços, a envaidecer as cabeças que lhes vão logo acima. Desses, nem todos são lidos, também. Diferentes destinos é o que mais há. Mas é ambição de mil e um de nós saber encantar ou, que seja, fazer chegar um afago de sono.
Acredito que qualquer papel aspira a conter em si o que ler ou o que ver. Só para não se ser de embrulho. Ter letras ou imagens - ou letras e imagens, melhor. Como no meu caso, passe o orgulho, que sou feito de alegrias e imaginações e de presépios e Meninos. Na capa apresento-me como "Livro de Natal" e não, sou encadernado, modesto e digno ainda, apesar das tais folhas e de algum descambamento.
Pretendo portanto sair deste lugar, entre mãos de gente que não conheça. Quem sabe, irei parar, dado, às trementes mãos de um velho asilado que me leia e depois morra. Ou, até, que morra eu às mãos irrequietas de um pequeno mais curioso (vês com as mãos, rapaz?).
Que não se compreenda que não gosto deste sítio de livros mas sinto a falta de umas mãos que me aconcheguem dentro de uns olhos. Assim respiro e sou olhado, ex-crisálida por um tempo, nem que aqui volte, um dia, por anos.
José Gaspar Ferreira
Antigamente, as livrarias faziam presentes para oferecer aos seus clientes. Este conto foi-me oferecido, em 1995, pela Livraria Manuel Ferreira, de um saudoso amigo alfarrabista do Porto, no Natal de 1995. É um livro pequenino, de 24 p., acompanhado de três ilustrações de Isabel Moreira.
O texto é muito engraçado.
ResponderEliminarBOM ANO, Jad!
BOMA ANO para todos!
Tb gostei do texto.
ResponderEliminarE tb tenho uma Mensagem, em tamanho mini, editada pelo Manuel Ferreira e que me foi oferecida pelo autor do post. :-)
BOM ANO, Miss Tolstoi!