sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Relato do agente Olívia, por Francisco José Viegas

Um capítulo de um livro inédito que revisita o inquérito que ficou conhecido como do "Estripador de Lisboa"

O quarto cadáver demorou dois dias a ser encontrado mas era previsível que aparecesse daquela forma - já a iniciar a decomposição, como um farrapo abandonado. Também era uma mulher e o inspector olhou para mim e disse-me que era melhor chamar os peritos, um nome que damos aos comparsas, que é, por seu lado, o nome que damos a uma equipa que transporta o ácido sulfúrico com que elimina os cadáveres incómodos sem deixar rasto. Eu costumo dizer isso, mas não é verdade: nós temos o dever de conservar os cadáveres, de lhes dar um destino e de explicar o seu aparecimento. Ninguém traz ácido sulfúrico, ninguém faz desaparecer cadáveres incómodos, pelo menos na nossa profissão. Na verdade, nós fazemos aparecer cadáveres. A equipa com que eu trabalho é uma espécie de fábrica de mortos; não teríamos sentido se não fossem eles; não teríamos trabalho se as pessoas não se matassem; não existiríamos se não houvesse cadáveres; finalmente, não seríamos tão odiados se não houvesse fabricantes de cadáveres. Isso é uma explicação de que toda a gente desconfia e, nestas condições, é melhor contar as coisas desde o princípio. Mas o princípio é apenas o primeiro cadáver a que se junta o segundo, depois o terceiro e, finalmente, o quarto. Há-de aparecer o quinto, um dia, mas é só uma suposição.
«O homem a quem o médico chamara inspector levantou-se e ficou uns instantes a sacudir as pernas, olhando para a paisagem como se o Sol já se tivesse escondido atrás das montanhas. Havia uma mistura de cinza e azul sobre as colinas que desciam para a estrada que se via daquele barracão onde o lixo convivia com a manhã de Lisboa. A única coisa em desacordo com a paisagem era aquele corpo. O primeiro cadáver do dia, pensei, enquanto fechava o bloco de apontamentos em que tinha escrito muito pouco - apenas a hora a que tínhamos chegado, "10h35", e a hora a que o médico legista apareceu, "10h57". A princípio custa bastante ser meticulosa, mas depois é um hábito, à medida que os cadáveres aparecem e desaparecem. Geralmente aparecem, sobretudo se há alguém que gosta de retalhar mulheres, de lhes retirar as vísceras e de imitar Jack, o Estripador. Até agora, quatro mulheres mortas e preparadas para o catálogo - vísceras arrancadas, nada de vestígios de sexo, apenas um corpo retalhado e um rosto irreconhecível. O que aprendemos antes de entrar na brigada nunca nos convence de que as coisas são mesmo assim; primeiro o espectáculo, depois o cheiro, depois o torpor, finalmente a estatística. Quatro mulheres. O homem a quem o médico chamara inspector limitou-se a olhar em frente:
"Ainda não chegámos ao fim. Vai haver outro."
"Como sabe?"
"Está escrito."
Era um homem com ar cansado e ligeiramente ensonado, baixo, com uma calvície dianteira incipiente, e estava vestido como se fosse domingo de Páscoa. O livro continuava a persegui-lo: "O Estripador de Lisboa", de Luís Campos. Uns anos depois, os cadáveres descritos no livro apareciam-lhe na vida real. Um a um. Eu entrei a meio, como uma aprendiz. Ao fim de uma semana, o inspector deixou-me uma cópia do livro e apresentou-me ao médico que acompanhava o inquérito. Olhei para ele, para o médico, que guardou a tesoura, fechou a mala e acendeu um cigarro enquanto pontapeava uma pinha velha que sobrara do Outono anterior. Ou de outro qualquer.
"Veremos como chega a próxima", disse ele. Todos sabíamos que ia chegar.

Sem comentários:

Enviar um comentário