Lisboa: Dom Quixote, 2008
Ossos do ofício
É nestes dias de sol (de sul)
que eu trabalho.
Mesmo quando as noites ferem
e são geladas lanças apontadas
ao ouro melhor do coração;
mesmo quando as manhãs nos dividem
e se tornam pétalas de mágoa acumulada
em torno do pescoço;
mesmo quando o amor se desmorona
e é um bloco de sono, coagulado.
É nesses dias de sol (de sul)
que eu trabalho.
Mesmo quando a escuridão se torna
um passatempo quase inútil
ou apenas um resto de luz mais esbatida;
mesmo quando as mais enegrecidas lavas
se colam ao peito como agrestes dunas;
mesmo quando o silêncio se transforma
em maremoto súbito ou nos faz acordar
novos rasgões na alma.
Repeti: é nestes dias de sol (de sul)
que eu trabalho.
Mesmo quando apenas sombras
crescem. E a dor é já um sal
irrecusável.
A utilidade dos poetas
Os poetas são pontes
para numerosos recados.
Ora eles (construindo-se) constroem
com o eclodir das suas imagens e metáforas,
oásis e palácios reinventados; ora eles,
alimentando-se com a rudeza da pedra,
ou mesmo com caliça e enxofre,
abrem espaço para recintos calamitosos,
para o zimbro do sofrimento.
Algumas vezes, tropeçando num qualquer acaso
de coloridas giestas, chegam a brincar
com o pico dos cardos ou com o ardor das urtigas,
transformando-se em ramos ou colares
de confiança e euforia; noutras alturas, marcando
encontros ocasionais com a proximidade da morte,
propõem-se participar, com a intrepidez
de um acrobata, no circo dos seus
mais arriscados limites.
Ora eles serão soldados que, numa demanda
de sul para norte dos poentes, vão encontrar
as grutas onde o desespero é um cão que realmente
morde; ora então, com o eventual
esplendor das suas frases, ferram as marcas
de um orgulhoso comboio a riscar as relvas
e as paisagens com o triçho implacável
do seu rodado.
Em certos momentos eles poderão crescer
bem por dentro das suas próprias prateleiras
e armários, no porão mais obscuro de um navio
muito íntimo; noutros instantes, todavia,
eles podem, com palavras de alvor
e de resistência, ajudar a erguer as traves
de uma cidade aberta, de uma pátria livre.
Sim, os poetas serão sempre prestantes
nesses e noutros variados timbres.
João Rui de Sousa
(p. 130-131, 135-136)
Porque ontem foi atribuído um prémio a João Rui de Sousa e porque amanhã é o Dia Mundial da Poesia.
Muito boa escolha!, MR.
ResponderEliminarParabéns, João Rui.
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