terça-feira, 20 de março de 2012

Do último livro de João Rui de Sousa

Lisboa: Dom Quixote, 2008

Ossos do ofício

É nestes dias de sol (de sul)
que eu trabalho.

Mesmo quando as noites ferem
e são geladas lanças apontadas
ao ouro melhor do coração;
mesmo quando as manhãs nos dividem
e se tornam pétalas de mágoa acumulada
em torno do pescoço;
mesmo quando o amor se desmorona
e é um bloco de sono, coagulado.

É nesses dias de sol (de sul)
que eu trabalho.

Mesmo quando a escuridão se torna
um passatempo quase inútil
ou apenas um resto de luz mais esbatida;
mesmo quando as mais enegrecidas lavas
se colam ao peito como agrestes dunas;
mesmo quando o silêncio se transforma
em maremoto súbito ou nos faz acordar
novos rasgões na alma. 

Repeti: é nestes dias de sol (de sul)
que eu trabalho.

Mesmo quando apenas sombras
crescem. E a dor é já um sal
irrecusável.


A utilidade dos poetas

Os poetas são pontes
para numerosos recados.

Ora eles (construindo-se) constroem
com o eclodir das suas imagens e metáforas,
oásis e palácios reinventados; ora eles,
alimentando-se com a rudeza da pedra,
ou mesmo com caliça e enxofre,
abrem espaço para recintos calamitosos,
para o zimbro do sofrimento.

Algumas vezes, tropeçando num qualquer acaso
de coloridas giestas, chegam a brincar
com o pico dos cardos ou com o ardor das urtigas,
transformando-se em ramos ou colares
de confiança e euforia; noutras alturas, marcando
encontros ocasionais com a proximidade da morte,
propõem-se participar, com a intrepidez
de um acrobata, no circo dos seus
mais arriscados limites.

Ora eles serão soldados que, numa demanda
de sul para norte dos poentes, vão encontrar
as grutas onde o desespero é um cão que realmente
morde; ora então, com o eventual
esplendor das suas frases, ferram as marcas
de um orgulhoso comboio a riscar as relvas
e as paisagens com o triçho implacável
do seu rodado.

Em certos momentos eles poderão crescer
bem por dentro das suas próprias prateleiras
e armários, no porão mais obscuro de um navio
muito íntimo; noutros instantes, todavia,
eles podem, com palavras de alvor
e de resistência, ajudar a erguer as traves
de uma cidade aberta, de uma pátria livre.

Sim, os poetas serão sempre prestantes
nesses e noutros variados timbres.

João Rui de Sousa
(p. 130-131, 135-136)

Porque ontem foi atribuído um prémio a João Rui de Sousa e porque amanhã é o Dia Mundial da Poesia.

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