Com esta caneta escrevo
o sinal quotidiano
do que é desassossego:
este pesar que se lavra,
esta pungência, esta carga
cerrada em fundo carrego.
Ou então a alegria:
este recorte e relevo
de dizer (não em segredo)
o quanto sol nos luzia
nas próprias sombras do dia,
nas névoas do próprio enredo.
Ou então um tal bulício
daquele vulto enrolado
aos instantes de solstício,
nas horas de cirandar
em montado ou pastorícia
nos vales do imaginário.
Ou então vastos sentidos
do calor mais abrasado
pela ternura sem vidros,
pelo olhar bem centrado
nos olhos esmaecidos
por tanta altura da vaga.
Com esta caneta escrevo
a luxúria destas águas
na corrida que do cerro
vai às areias das mágoas,
aos sedimentos do medo
que se juntam pelas margens,
pelos caminhos dos nervos
enevoados de fráguas,
pelos fantasmas correntes
que se aviam na desgraça
de quem rasa na tristeza,
de quem só tristeza gasta.
Com esta caneta escrevo
em qualquer trono de cedro
o que a esmo me concedo
entre o moer e a pedra:
escrevo, emendo e reescrevo
o curso seguir das chamas,
o limpo sorrir das ervas.
João Rui de Sousa, Lavra e Pousio, Lisboa, Dom Quixote, 2005, p. 55-56
Neste Dia Mundial do Livro recordo este poema que é mais uma vez dedicado a ...
Parece-me que conheço este poema. :)
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