Pietro Antonio de Petris (ca 1665-1716) - Assunção de Nossa Senhora
Gravura, entre 1690 e 1710
http://purl.pt/5090/1/
Georg Braun (1541-1622) - Cascais, ca 1572
«Passou esta semana o dia da Assunção - uma das quatro grandes festas do ano.
«Bela solenidade essa com que a Igreja comemora a entrada da Mãe de Cristo no céu. Lindo dia em que por voto especial soam festivamente os órgãos de todas as catedrais portuguesas, e muitas povoações do país vestem galas e pompas de ferverosa devoção. [...]
«Aqui, em Cascais, "Santa Maria d'agosto", como diziam os antigos cronistas, é o orago da matriz, o da calçada, que do largo deste templo vem descendo até à Praça, tem o nome - d'Assunção.
«Pois é uma das ruas historicamente mais notáveis de Cascais, e ainda hoje a nobilitam alguns vestígios heráldicos de sua passada grandeza.
«No espaço compreendido entre esta calçada e a Cidadela ficava o castelo e dentro dele o paço dos senhores de Cascais - esses famosos Castros em cujo brasão brilhavam ses arruelas, de que eles tanto se ufanavam sobre todos os outros Castros.
«Ainda hoje, quem gostar de contemplar pedras antigas pode observar, na muralha que corre a um dos lados da calçada, um persistente exemplar das seis arruelas dos Castros e também uma pequena seteira, que deveria servir para tiros de arcabuz.
«Um arco aberto na muralha mostra ainda, na solidez e espessura, a sua antiguidade, sob a camada de tinta com que o modernizaram.
«No prédio n.º 26 da calçada d'Assunção há uma porta e janela de verga recortada, que devem ter procedido dos escombros do paço.
«Mais alguns anos volvidos e as arruelas e a seteira terão desaparecido talvez. Cascais é uma vila que se alinda de dia para dia, graças à iniciativa elegante do meu velho amigo Costa Pinto, que não há reformador mais desvelado do que ele.
«Estas minhas palavras, hoje têm por fito conservar a memória dos últimos vestígios do paço dos senhores de Cascais, para o caso de que alguns novos chalés, como tem acontecido no antigo recinto do castelo, venham substituir a muralha.
«Escrevi no livro que se intitula Sangue azul a biografia daquele dos Castros, condes de Monsanto, que foi primeiro marquês de Cascais.
«Era um fidalgo espirituoso, do bom tempo em que os havia; sentencioso no falar, mordaz na sátira, mas sempre filósofo nos conceitos. Dizia verdades chistosas a toda a gente; até as disse ao rei D. Afonso VI atacando-o por balda certa.
«Toda a gente sabe qual era a balda certa de D. Afonso Vi: era justamente o que ele tinha de menos certo. [...]
«Aqui nas varandas do seu paço, sentir-se-ia bem o marquês de Cascais, porque tinha diante de si o mar, de que ele procurava ser o simulacro na terra... pela grandeza dominadora.
«Eram dois vizinhos dignos um do outro, que deveriam dar-se os bons dias de igual para igual.
«Mas de toda essa antiga pompa de Cascais apenas restam as seis arruelas, a seteira, duas pedras lavradas e... o mar.
«Esse é que ainda hoje é o mesmo.
«A feição moderna da calçada d'Assunção salienta-se numa tabuleta que anuncia a mais elegante dsa indústrias locais, a de gulosrimas destinadas a lisonjear o paladar de pessoas finas, que só comem bolos, por não serem bastante nutritivas as flores, de que por galanteria desejariam alimentar-se.
«Diz a tabuleta:
ANTIGA CASA
FAZ-TUDO
Especialidade em bolos
reais, joaninhas e areia
e outras qualidades de doces
«É uma pequenina loja de confeiteiro, mas talvez o mais afreguezado e famoso estabelecimento comercial de Cascais. Abre logo de manhã; fecha pela meia-noite.
«Dão acesso para ele alguns degraus de pedra, uma escadinha estreita, que tem sido pisada pelos mais delicados pés da aristocracia feminina.
«A lista de doces ali fabricados tem o que quer que seja de harmonioso com os vestígios heráldicos, que na muralha fronteira memoram ainda o esplendor do marquesado de Cascais no século XVII.
«É toda uma nomenclatura freirática, um vocabulário arrebicado de convento, segundo o estilo dengoso daquela época, em que o travesso Cupido punha o avental branco de mirmidão para servir guloseimas aos vates, nas grades dos mosteiros, como recompensa de insulsas toantes à castelhana.
«Copio textualmente parte da lista:
Bolos secos
De Amor - De Amêndoa - De Areia - Argolas - Argolas d'Amêndoa - Argolas Cobertas - Esquecidos - Testinhas - Figos de Chocolate - Joaninhas - Lacinhos - Marmelada Fina - Palitos - Palitos d'Amêndoa - Palitos d'Oeiras - Suspiros - Torradinhas - Boking.
Doves finos para mesa
Barriga de Freira - Arroz de Bom Bocado - Arroz Doce - Bolo Real - Bolo Inglês - Doce de Gila - Fatias da China - Leite Creme - Pão de Ló - Pão de Ló d'Amêndoa - pastéis de Marvão - Peixe Doce - Queijinhos de Ovos - Sopa de Borrachão - Sopa Dourada - Toucinho do Céu - Lampreias d'Ovos.
«Os alambicados diminuitivos - Testinhas - Joaninhas - Lacinhos - Torradinhas - são linguagaem própria do século mais freirático que em Portugal tem havido. Cheiram a convento de freiras, não porque o houvesse em cascais, mas porque desta vila foi senhor um fidalgo que possui todos os defeitos e dotes do seu século, e que deixou tradição local.
«O bolo d'areia pode parecer ridículo pelo nome, pois que calão moderno - areia - significa toleima, mas não deixa de ser próprio de uma praia, onde, de mais a mais, há um pouco de isso...
«Quanto aos bolos finos para mesa, a nossa curiosidade encalha logo no que se denomina "barriga de freira". Conquanto ignoremos sua origem, tanto mais difícil de encontrar depois que não há freiras, porque falta absolutamente o campo de observação, é certo, porém, que também rescende á gulodice galante dos conventos do século XVII.
«Enfim, a calçada d'Assunção, em Cascais, se poucos vestígios arqueológicos ainda conserva do tempo em que a vila foi marquesado e dele recebeu brilho e fama, tem na antiga casa Faz-Tudo o que quer que seja de característico dessa época, de ucharia e galanteio, nas doces Joaninhas que se comem, nas Testinhas que se beijam e mordem, nos Lacinhos com que se enfeita o estômago, nas Torradinhas que dispensam manteiga, e nas Barrigas de Freira a que uma pessoa toma o gosto sem ofender os cânones.
«Quando se sobre para o largo da Igreja Matriz, e junto a ele, tornam a aparecer mais vestígios da muralha e um mirante, que está hoje branco como a cara enfarinhada de um palhaço, mas que talvez fosse outrora um cubelo da fortaleza, que defendia os paços dos senhores de Cascais.
«Possui hoje a vila a linda Avenida Valbom, o belo Passeio Maria Pia, o tranquilo Jardim da Parada, o solitário Passeio do Visconde da Luz, mas nenhuma rua pode despertar mais interesse a um misantropo, como eu, do que a calçada d'Assunção, que tem pedras e doces que falam do passado, de marqueses com marquesado territorial, de galanterias e bolos, de amores e conventos, finalmente, de freiras cuja beleza plástica ainda agora é celebrada em graciosos monumentos de açúcar e amêndoa.
«Cada vez que subo ou desço a calçada d'Assunção parece-me ter dentro da boca um rebuçado.
«É o século XVII:»
Alberto Pimentel
In: Sem passar a fronteira.Lisboa: Gomes de Carvalho, 1902
* Hoje Rua Marques Leal Pancada.
Mais um "Pimentel" interessantíssimo, e que não conheço.
ResponderEliminarBom feriado(?)!
Este ano é feriado. :) E parece que vai continuar a sê-lo. Com tantas festas pelo país era uma estupidez acabarem com este feriado.
ResponderEliminarEste Pimentel estava guardado há que tempos. Ontem ainda pensei em meter-me no comboio e ir até Cascais jantar à Parreirinha que fica nesta rua, mas com aquele tempo ao final da tarde... Pode ser que para a semana...