sábado, 28 de janeiro de 2012

A Dama das Camélias no Estoril


Este livro, de circa 1931, foi a minha companhia de Metro no dia de hoje. É pequeno, 34 páginas de um formato 11x15 cm.

Só para abrir o apetite:

Sonho desfeito
Ao fim da tarde... O sol descia ao longe na linha do horizonte sobre o mar azul soltando os últimos reverberos sangrentos.
Do Casino Internacional, vinham uns sons longínquos de Jazz. Na esplanada do Tamariz, grupos de cavalheiros irrepreensivelmente vestidos, estavam flirtando junto das mesas redondas com damas decotadas de cabelos oxigenados que o sol fazia de ouro brilhante.
Em baixo na praia, sobre a areia fulva e quente, espreguiçavam-se os pares de maillots róseos e negros, adivinhando-se as mulheres, apenas pela graciosidade e elevações doa contornos tão iguais eram os seus trajes.
Ora um desses pares, era formado pelo jovem Armando Valle, filho estroina do tesoureiro do Banco Nacional, e em pregado ele próprio no mesmo banco, e pela rainha de beleza daquela praia já de si linda.
Margarida; se assinava ela simplesmente mas à falta de nomes pomposos ou mesmo de um simples nome próprio, os adjectivos que os seus inúmeros admiradores lhe dirigiam, tornavam-na inconfundível...
A sua beleza era o seu brasão.
Quem a visse assim naquela atitude pensativa docemente recostada num montículo de areia, diria ver a própria Vénus de Milo ressurgida completamente naquele mimoso recanto do Estoril.
O seu maillot rosa-pálido, parecia querer rebentar sob a palpitação fremente, daquela carne mimosa, e sequiosa de amor...
Tudo nela respirava vida, mocidade, sol, labaredas!...
Os seus olhos azuis, de tons estranhos, grandes rasgados doces, ora extremamente meigos, ora rutilos, ferinos de amor, eram bem as janelas luminosas daquela alma ora plácida, ora revolta, irmã gémea do imenso mar, mas sempre grande. Sempre leal e nobre.
O rosto suave, amorenado pelo Sol, sem ter perdido ainda as cores inefáveis do lírio e das rosas...

Casimiro Braga, A dama das Camélias no Estoril, s.l. [Lisboa], s.n, s.d. [post. 1931].

Boa noite!

Este álbum deve ser fantástico.

Solamente Tú



Por vezes procuramos,
olhamos para o lado
e não encontramos!

A nossa vinheta


Mikhail Baryshnikov nasceu em Riga a 28 de Janeiro de 1948, faz, hoje, portanto, 64 anos.
Actualmente está naturalizado norte-americano.

«Mischa est tellement musical que quand il danse on voit la musique.»
Roland Petit

Números - 80


50.000

Um número que surpreendeu muitos franceses, e não só, é este dos militantes do Front National francês, o partido hoje dirigido por Marine Le Pen, filha do carismático ( e odiado ) Jean Marie. Se pensarmos que em 2009 o partido tinha apenas 10.000 militantes...

Flores

Paul Signac (1863-1935) - Blumenstillleben
Lápis e aguarela, ca 1920-24
Viena, Albertina

Humor pela manhã... - 92


Publico quase como exorcismo, porque nem quero pensar nesta eventualidade...

Mini-livros - 5

Esta colecção de postais veio de Karlstein, República Checa. Tem 4,2 cm de altura.
Acho que trouxe outro de Karlsbad, mas não o encontro.

Cem anos de tração elétrica em Coimbra

No dia 1 de janeiro de 1911 foi inaugurada a viacção elétrica em Coimbra, com três linhas: da Estação Velha à Alegria, da Estação Nova à Universidade e da Estação Nova aos Olivais. Ao longo dos 69 anos que durou este transporte na cidade, as linhas foram aumentando e diminuindo, até que à 1h00 de 9 de janeiro de 1980 oos elétricos recolhem às instalações da Rua da Alegria para não mais saírem.
Até dia 12 de fevereiro pode ver uma exposição sobre este meio de transporte, no Museu Chiado, em Coimbra.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Quase na hora de...


... de jantar, pelo que aqui fica esta novidade sobre a gastronomia dos Alpes Franceses.

Cuisine d'altitude, Gilles Brochard e Benjamin Courtois, Verlhac Editions, 166p, €37.

Hino Real para o JP

Com um abraço de parabéns, este Hino Real, no Império Austro-Húngaro, mas que podia não ser...

De Évora para JP


Desculpa a falta de originalidade. Mas gostei desta capa (em especial do simbolismo da imagem que a ilustra) fazendo lembrar outra ordem, S. Agostinho, com o Sol e a Lua em cada uma das patas.
Desejo um dia feliz.

O livro das mil e uma noites

Em fascículos.

O livro das mil e uma noites (Lisboa: Estúdios Cor, imp. 1958-1962, 6 vols.), tem uma introdução de Aquilino Ribeiro e foi traduzido por este, Branquinho da Fonseca, Carlos de Oliveira, Celeste Andrade, David Mourão-Ferreira, Domingos Monteiro, Irene Lisboa, João Gaspar Simões, José Gomes Ferreira, José Rodrigues Miguéis, José Saramago, Jorge de Sena e Urbano Tavares Rodrigues; e ilustrado por António Charrua, Bartolomeu Cid, Bernardo Marques, Cândido Costa Pinto, Carlos Botelho, Cipriano Dourado, Fernando Azevedo, Jorge Martins, Júlio Gil, Júlio Pomar, Lima de Freitas, Manuel Lapa, Maria Keil, Sá Nogueira e Vaz Pereira.
O livro estava à venda, há um ano, na Livraria Lumière, por €350,00 e na Avelar Machado por €277,72.

Ilustração de Maria Keil para O livro das mil e uma noites.

Em geminação com o ARPOSE e para APS. E também para Margarida Elias.

Cartas da Real Fábrica

Encontra-se patente uma pequena exposição das Cartas da Real Fábrica, no átrio do edifício da Casa da Moeda. Em sete expositores podemos ver desde a planta da Impressão Régia e da Real Fábrica das Cartas de Jogar (ca 1815) a baralhos, bloco xilográfico, chapas calcográficas, pedra litográfica e folhas de provas.



A Imprensa Nacional-Casa da Moeda editou no ano passado cinco baralhos de cartas de jogar, feitos a partir de cartas produzidas pela Real Fábrica de Lisboa.

Para o JP, com votos de Parabéns.

Frase da semana ( que passou )


Abandonei o modelo burguês. Já não tenho despesas com o jardim, a empregada interna, os cães, a piscina.

- Margarida Rebelo Pinto

" O que terá ela feito aos cães? " - Disse uma amiga minha quando também leu esta frase. Compartilho essa curiosidade.

«Nenhum poeta, nenhum artista de qualquer arte tem opinião exacta de si próprio. Compreendê-lo, estimá-lo, é estimar as relações dele com os poetas e os artistas do passado. Não podemos julgá-lo sozinho, é preciso colocá-lo, para o contrapor ou comparar, no meio dos mortos.»
T. S. Eliot (1888-1965) - A tradição e o talento

Parabéns, JP!



Mosteiro de Santa Clara-a-Nova, portal com o brasão de armas de Portugal sustentado por dois anjos custódios.






Parabéns JP,

Desejo-lhe um dia muito feliz!

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Os meus franceses - 177

Juliette Gréco lançou um novo CD

Ampúrias


Na tarde como Grécia imaginada
o ar se pousando claro à beira-mar
do golfo a recurvar-se verde-azul.
O cais primevo pende em ruína n’água
tão calmente em volta como pela areia
ondículas de praia silenciosa.
Paredes, ruas, casas rente ao chão
de que escavadas emergiram: pedras
branquipardas, secas de um aragem
quão perpassante e rasa nas colinas.
Aqui de Ibéria os gregos se fizeram
primeiramente terra das Espanhas.

(26/1/1970)

Jorge de Sena

Para não esquecer

Amanhã, Dia da Memória, passa este filme no Instituto Italiano de Lisboa, às 18h30.

Nove testemunhos de italianos que sobreviveram à deportação e à prisão nos campos de extermínio de Auschwitz, retirados do arquivo da Shoah Foundation Institute for Visual History and Education, criado por Steven Spielberg. Nove histórias para reviver os passos mais significativos desta dramática experiência: o momento da promulgação das leis raciais em Itália, as inúteis tentativas de fuga, a deportação, a separação das próprias famílias, a milagrosa sobrevivência em Auschwitz, a libertação com a chegada das tropas aliadas. Testemunhos que, por vezes, revelam sentimentos de comovida ternura e alguma inesperada alegria.
Leonor Fini (1907-1996) - Retrato de Marcel Jouhandeau
Óleo sobre tela, 1962


«L'extase est incompatible avec l'habitude.»
Marcel Jouhandeau (1888-1979)

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Boa noite!


Porque hoje é o Dia Nacional da Bossa Nova, no Brasil.

Três poemas de amor: Árvores e Pardais


I

o dia não aqueceu
e os raios de sol foram tão cálidos
que nem os pequeninos pardais
se atreveram a revolutear
em travessuras

a terra não aqueceu
e a árvore encolheu-se
a tremer de apreensão

porque tinha calafrios
quando tudo parecia tão monótono?

súbito
um pequeno pardal
chilreou agitando
com suas asas o ar
de suspiros
de lamentos
de incertezas

vinha de longe
para pernoitar
e o chilreio tão comovente
brotava de um coração
quente
ardente
vigilante e atento

e esvoaçava à procura
de algo.
todos os animais estavam atentos
também as árvores se engalanaram
para o atrair

pouco confiante a tília
deixou cair uma folha
e o pardal viu-a ondular
e bater no solo
rugoso
frio
despido

sentindo tamanho amor
o chilreio soou sinfonia
naquela tarde a escurecer.
cruzaram-se notas
soltaram-se instrumentos
e o enamorado pardal
deslizou com suavidade
para o mais pequeno ramo
da experiente tília
que o abraçou ternurenta
e aconchegou pela noite.


II
esgotei minhas palavras
a secar as gotas
que escorriam
descontroladas
do meu coração

perdi o sorriso
mesmo vendo o teu
sangrava nesse instante
descontrolado
no meu rosto

caíram os sonhos
a nossos pés
sem reagir
descontrolados
culpa do passado

voei como pardal
esta manhã
à procura do ramo frondoso
do rasto da tília
ficaram as raízes
onde teria escondido
sua folhagem?
seus ramos fortes e doces ao vento?
piei sem chama
ao silêncio
perguntei a tudo o que se movia
dove sei
e em resposta um sorriso
que me esperançou
mas ainda frágil
espero pousado nas raízes
à espera

III
o pardal esvoaçou
rumo ao paraíso
adormecido no espaço das raízes
que a velha tília deixou pelo caminho.
aí se deu conta
que o paraíso
estava mais vazio
sem a tília
a velha tília
que tinha abandonado o espaço.
o corpinho do pardal estremeceu
olhitos cerrados
convulsões pelo pesadelo que sonhava.
continua ainda o pardal adormecido
a esvoaçar entre sonhos
aguardando a velha
tília
retomar seu espaço
entre as raízes que deixou
ao fugir.

RE, Dove : 20 poemas de amor, Lisboa, Quare, 2012.

Felizes os pardais que encontram a sua árvore para dormir.
Como ficam tristes os pardais que a viram partir, com amor!
Fiquem com uma dúvida: foi o pardal que voou; foi a árvore que secou; ou foram apenas desencontros desta vida... que outra vida, um dia, saberá unir?

Frutas - 77

Henri Fantin-Latour (1836-1904) - Natureza-morta: dálias, uvas e pêssegos

Humor pela manhã... - 91


(...) Os críticos que pretenderam reduzir a ideia do Álvaro aos seus aspectos mais folclóricos não perceberam, ou não quiseram perceber, que o projecto não pode ser confinado à exportação dos pastéis, mas deve ser integrado numa estratégia de desenvolvimento global. A produção e venda de 78 mil milhões de pastéis fará de Portugal o maior produtor mundial de colesterol. Um investimento paralelo em medicina cardiovascular poderá projectar internacionalmente a ciência portuguesa e contribuir para manter relações comerciais múltiplas com a estrangeirada lambona, que passa a frequentar-nos tanto a pastelaria como o consultório médico. Mãos à nata.

- Ricardo Araújo Pereira, na Visão.

[La noche sosegada]...


La noche sosegada
en par de los levantes de la aurora,
la musica callada,
la soledad sonora,
la cena que recrea y enamora.

São João da Cruz - Cântico espiritual

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Parabéns, Ana!


Quase ao findar do dia, mas aqui ficam! Com uma Sant'Ana que encontrei na net, com a vantagem de ser muito mais juvenil do que a maioria das representações e um intermezzo nórdico a acompanhar!
Um bom ano!

O chá das cinco - 36

Uns amigos enviaram-me este postal, de Londres, há 15 anos: Hello from England: Afternoon tea.
Foto Greg Evans.

Um quadro por dia - 224


Uma deliciosa tela de Norman Rockwell, o Aniversário da Professora, para a Ana. Muitos parabéns!

Marcadores - 28

Este também é em metal e veio da Fundação Miró há anos, pela mão de um amigo.

Bom dia !



Um ano depois de Pulp Fiction, Thurman e Travolta voltaram a dançar juntos.

Frederico II

O mais célebre dos reis prussianos, Frederico II, nasceu a 24 de Janeiro de 1712. Seus súbditos alcunhavam-no de Alter Fritz (o velho Fritz) de forma quase carinhosa, e a História conferiu-lhe o cognome „O Grande“. Conduziu a Prússia a uma das maiores potências da sua época, seu estilo de vida e seu carácter tornaram-no excepcional.
2012 será novamente seu ano por ocasião do tricentenário do nascimento, e muitas iniciativas em Berlim recordarão este homem. Na nossa plataforma, marcará também presença.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

A Irmandade Pré-Rafaelita em série na RTP2


Hoje, às 22h45 passa o segundo episódio da série Românticos desesperados, uma produção da BBC, inspirada no livro de Franny Moyle.

A 10.ª avenida mais luxuosa do mundo

Avenida da Liberdade - Litografia de João Cristino, 1905
Cruzamento com a Rua Alexandre Herculano- 
A Av. da Liberdade, de Lisboa, foi eleita a 10.ª avenida mais luxuosa do mundo. Neste país em que o ordenado mínimo não chega a €500,00 e em que o ordenado médio ronda os €800,00 existe a 10.ª avenida mais luxuosa do mundo.
À noite, quem passear pela avenida também pode ver uma grande quantidade de sem abrigo, deitados junto aos prédios, dos dois lados da avenida.

Em português - 142 : Kátia Guerreiro



Porque ela actua hoje no Olympia de Paris, e com lotação esgotada.

O «Tesouro dos remédios da alma» - 2

Biblioteca Municipal de Viseu, projecto de Manuel Taínha

«No Egipto, as bibliotecas eram chamadas "Tesouro dos remédios da alma". De facto é nelas que se cura a ignorância, a mais perigosa das enfermidades e a origem de todas as outras.»
Bossuet

Rosas e mimosas

Chagall - Rosas e mimosas
Óleo e lápis sobre tela, 1956
Col. particular

Para o Jad.

Humor pela manhã... - 90



É claro que as espantosas declarações de Cavaco Silva sobre as suas "reformas" e as suas "despesas" tinham de dar azo a um enorme aproveitamento humorístico. Estes são dois de muitos que vi nestes últimos dias.

Ana Pavlova


Ana Pavlova faleceu com 50 anos, a 23 de janeiro de 1931, em Haia.

Na Morte do Cisne.
Frederick Ashton e Natalia Makarova falam sobre Ana Pavlova.

Roland Petit escreveu uma carta a Ana Pavlova, no programa do bailado Ma Pavlova (out. 1986):

«Chère Pavlova
«Cette lettre pojur vous dire que, dans toute l’histoire de la danse, vous êtes la plus belle, la plus grande, la plus célebre, mais aussi la plus mystérieuse, la plus mythique. Garbo n’est pás loin! Et pourtant ce n’est pás le cinema de celluloïd qui vous amène jusqu’à nous, mais plutôt celui de nos nuits blanches où nous rêvons de vos danses éthérées qui ont conquis le monde.
«Oui, je rêve de vous, déroulant votre cou de cygne, évoquant la nostalgie de l’automne qui succède aux charmes de vos arlequinades.
«Princesse des féeries de Saint-Pétersbourg, sylphide de Diaghilev au théâtre du Châtelet en 1909, où Jean Cocteau vous adorait, vous avez égrené votre art à travers le monde comme on égrène un chapelet, avec ferveur et conviction.
«Vous avez conquis le public, les publics, vous avez prêché la danse comme une religion.
«Quatre cent mille kilomètres parcours, de train en train, ed porte n port, de theatre en theatre suivie de vos apôtres, les danseurs du ballet, vos habilleuses qui chaque soir faisaient de vous la grande prêtesse d’un art simple, direct, forte et raffiné, la danse. Merci, chère Pavlova, d’avoir inventé votre legende que nous allons essayer de recréer, ce soir, avec modestie et admiration, en espérant que vous serez prés de nous pour nous souffler un peu de votre génie.»

Dominique  Khalfouni em Ma Pavlova.
Quero dizer-te uma coisa simples: a tua
ausência dói-me. Refiro-me a essa dor que não
magoa, que se limita à alma, mas que não deixa,
por isso, de deixar alguns sinais - um peso
nos olhos, no lugar da tua imagem, e
um vazio nas mãos, como se as tuas mãos lhes
tivessem roubado o tacto. São estas as formas
do amor, podia dizer-te; e acrescentar que
as coisas simples também podem ser 
complicadas, quando nos damos conta da 
diferença entre o sonho e a realidade. Porém, 
é o sonho que me traz à tua memória; e a
realidade aproxima-te de ti, agora que
os dias correm mais depressa, e as palavras
ficam presas numa refracção de instantes,
quando a tua voz me chama de dentro de
mim - e me faz responder-te uma coisa simples,
como dizer que a tua ausência me dói.


Nuno Júdice ( Pedro, lembrando Inês, Lisboa, Publicações D. Quixote, 2009, p. 16)

In Memoriam

A minha primeira História de Portugal era do Professor A. H. Oliveira Marques, uma 6ª edição, publicada em 1976. A imagem que inicia o livro.




A. H. Oliveira Marques faleceu no dia 23 de Janeiro de 2007, mas a sua obra é eterna.

domingo, 22 de janeiro de 2012

Citações - 214


(...) O pior é que entretanto a ilusão se estendeu à província. As câmaras arranjaram " vereadores culturais ", com funções para lá da compreensão humana. Promoveram encontros, conferências, colóquios, simpósios, festivais. Convenceram o Estado a comprar os cineteatros de 1905 ou 1940, que se iam desfazendo serenamente em ruínas, para uma "produção nacional" imaginária ou pobre. E, se por acaso, não havia um cineteatro à mão, construíram de raiz, e por milhões de euros, centros culturais, centros multiusos, centros de arte, centros de música ou o que lhes passou pela realíssima cabeça. Hoje, esses melancólicos resultados da megalomania e do alfabetismo, com custos de manutenção a pagar, sem um vintém e sem futuro, começam a fechar. A crise veio de muitos milhares de histórias assim.

- Assim termina  Brincadeiras "culturais", publicado no Público de ontem.

Ao final da tarde... - 31 : Etta James



Deixou-nos na passada sexta-feira, vítima de uma leucemia. R.I.P.  Etta James ( 1938-2012 ).

Canção da manhã


como os estranhos pássaros nascidos em tua boca
como os rios que te correm entre os olhos
como as esmeraldas que formam as asas dos teus ombros
como os longos ramos da árvore de sono do teu braço
como o grande espaço em que o teu corpo repousa
deitado na tua própria mão
como a tua sombra idêntica à nuvem
que se encontra no mar

assim é a presença que de ti tenho
nas noites em que o fogo se acende
nas montanhas longínquas e fulgurantes
quando os meus passos me projetam
para os mais elevados cumes solitários
quando o sangue canta
através do aço vibrante do meu corpo
levando-me ao longo do caminho de flores rubras
que tu plantaste

assim é o desejo de te encontrar
nascida nas minhas mãos
erguida como torre de catedral perdida
envolta na minha boca
caminhando comigo
pela estrada que nossos pés abrirão triunfantes

Deixa que eu quebre tudo que tenho e que terei
tudo o que é de todos e que só a mim pertence
deixa-me quebrar o cavalo que me deste
na noite do nosso primeiro encontro
deixa-me partir a bola o cão o espaço
deixa-me quebrar a minha casa e a minha cama
a minha única cama…
não quero que me contem a aventura
nem que me dêem almofadas
não quero que me ofereçam sombras
só por mim construídas e logo abandonadas
nem sequer esquinas de ruas
não quero a vida
sei claramente que não a quero
a não ser que ela esteja partida quebrada
quebrada por mim e por ti

e a minha infância
essa dou-ta
inteira muito longa e cruel
deixa que dela me fique apenas
essa crueldade
e que nela só eu siga
ignorando o que me deste
e que
martelo ou pedra
eu continue partindo quebrando
esfacelando dilacerando
o teu corpo que já não está ao meu alcance

deixa-me ser anatomicamente autêntico
sem erro
sangrando
perdido para sempre

Mário-Henrique Leiria