quarta-feira, 26 de março de 2014

Marcadores de livros - 148


«Ainda vivo no Estoril. Como troquei o azul do mar pelo verde da folhagem, não me sinto desfalcada. De manhã, oiço o canto dos pássaros, e ao entardecer, os grandes silêncios do campo.» (p. 17)
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«Acordei há pouco, estou a  escrever de pijama. São rotinas de quem vive sozinho. Ninguém me vê e, se tocarem à porta, finjo que não estou. Não me orgulho disto, todos os dias juro que será a última ve que venho para o computador nesta figura, mas como as ideias surgem claras de manhã apresso-me a apontá-las. Quando dou por isso é meio-dia e envergonho-me deste hábito de porteira, que não me abona.
«Vi-me ao espelho há momentos e sorriu-me esta cara infeliz e esta expressão cansada, que assinala a minha odisseia. Penso muitas vezes sobre se seria capaz de trocar de cara por outra mais inspirada, se pudesse. Não creio. Tenho incorreções suficientes, mas a verdade é que tudo isto conta uma história mais interessante do que as outras, por ser a minha, cujo fim venho pagando para conhecer. Além disso, os meus traços são genéticos. Sou parecida com o meu pai e gosto que mo digam, tenho orgulho nisso, como se pudesse prolongar a sua memória. Uma cara é um brasão, um conjunto armorial completo, não é coisa que se decline, como um café ou um encontro.» (p. 27)
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«Enquanto os ouvia [colóquio na Católica sobre António Quadros] a decifrar os seus livros e ensaios, só me lembrava de como as chumbadas arcadianas o maçavam e de como se deve ter rido ao ver-me ali, impaciente como um leopardo enjaulado. Nunca é o pensamento que assusta, é a gramática pesada que o serve, as mil remissões do discurso académico. Nem são as resmas de papel nas mãos dos oradores, a prometerem-se infinitas; é a palidez de algumas caras e a suspeita de que não será preciso tanta renúncia ao sol e ao prazer para entender a vida e aceitar a morte.» (p. 33)
É a filosofia portuguesa (ou o que isso seja), digo eu.

Rita Ferro - Veneza pode esperar: Diário I. Alfragide: Dom Quixote, 2014

3 comentários:

  1. A benefício de inventário, apesar do título, pela positiva. É um belo excerto.
    Boa tarde!

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  2. É um livro engraçado e com algumas partes interessantes.
    Eu gostei de ler.

    Boa tarde!

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