Qual o poder do Autor, num mundo onde as palavras foram substituídas por números que subtraem, omitem ou rasuram as pessoas? Apesar do cerco actual, aprendemos com outros cercos e sobrevivemos a outros perigos e ameaças. A nossa história foi-se construindo na ilusão, um pouco louca, um pouco presunçosa, de nos anteciparmos a nós próprios a fim de estabelecer a ponte entre isto e aquilo.
Escrever, criar, sonhar não são, apenas, representações: são projectos e projecções ideológicos, e renovadas relações entre História e memória. Não há que fugir a isto: ao compromisso exemplificado na declaração tremenda de que a batalha pela liberdade de criação implica a recusa da mentira e uma permanente resistência à opressão e à tirania. Temos de estar cada vez mais atentos e cautelosos. As minúcias do cerco tornaram-se extremamente subtis e, por isso mesmo, mais operativas. Querem fazer-nos crer na fragilidade da palavra, na fugacidade da arte, na desimportância do acto de pensar. Acaso essas afirmações possuam algo de verdadeiro. Porém, a opção cultural não é questão de previsões, de cálculos, de estatísticas - exactamente porque estamos a falar da condição humana, a argila com a qual o Autor molda a natureza das suas imperfeições, na procura de uma improvável perfeição.
O nosso horizonte nasce e amplia-se através de fortes imperativos éticos e de consistentes decisões morais. A estética resulta do almofariz onde se procede a essa fusão, e a invenção de formas provém da probidade com que trabalhamos no nosso ofício. O Autor não é uma criatura neutra e muito menos independente ou imparcial. Escrever, criar, sonhar são sempre lugares de encontro e de procura do outro. Interpelar é tomar o partido da compreensão, para se refazer o caminho. Responsáveis pelas nossas palavras, poderemos vir a ser culpados de as utilizar sem a autoridade moral e a nobreza por elas exigidas. Com o tempo e com a prática aprendemos que as coisas insignificantes devem ser tratadas com a maior seriedade.
Talvez o mundo de outrora fosse mais simplificado, sem deixar de ser menos complexo ou perigoso. Enfrentámo-lo na certeza de que as palavras continham, no seu bojo, a magnitude da esperança, e a crença de que poderiam modificar as coisas e os destinos. Enfrentámo-lo no limiar do desassossego que torna cúmplices o coração e a razão.
Enfrentámo-lo e aqui estamos, herdeiros de um legado de insubmissão e de altivez. Aqui estamos, para o que der e vier.
Com as palavras, como é hábito.
(Texto lido no Dia do Autor, 22 maio 2007)
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