sexta-feira, 6 de outubro de 2017

Lembro-me tão bem dos JO de Madrid

A crónica de Ferreira Fernandes no DN de hoje: 


Lembro-me tão bem dos Jogos Olímpicos de Madrid. Pudera, foram os meus primeiros JO. Mais tarde iria aos de Atenas, em 2004, também memoráveis. Bem, memoráveis são todos porque é uma concentração de homens e mulheres soberbos a ultrapassarem fasquias que antes de vencidas já eram extraordinárias. É quase viciante vê-los. Eu, que ao vivo assisti a pouco atletismo, ao fim dos dois JO em que estive, senti-me em estado de carência: faltavam-me os olhos doidos do chinês Liu Xiang, a 30 metros de mim (mordomia de jornalista), a dar-se conta, no salto da última barreira, de que ia ser campeão.
Porém, o que me cala fundo nos JO, mesmo, e por isso me lembro tão bem dos meus primeiros, os de 1992, em Madrid, é aquela vontade conseguida de juntar. De juntar-nos. Já o escrevi e volto a repetir, um dos momentos da minha vida foi ver duas velhas namibianas, branca e negra, ambas de vestidos e guarda-sóis vitorianos, a falar não sei de quê, numa praia de Swakopmund. O Swako é um rio efémero, a maior parte do ano o deserto engole-o, "mund" é boca em alemão e um comerciante português garantiu-me que o nome da cidade queria dizer cu do mundo. Brumosa, varrida pelo vento e, naquele ano de independência, 1990, as duas velhas estariam a despedir-se. Repito: juntar comove-me, separar entristece-me.
Isso para vos dizer que um dia, julgo que do verão de 1971, indo de Paris num calhambeque, desembarquei num concerto no campus da cidade universitária de Grenoble. O convívio com alguns artistas permitiu-me chegar aos bastidores e estava lá uma lenda, Paco Ibáñez. Neruda dera-lhe poemas para cantar e, no Olympia, ele traduzira Brassens para castelhano. Pai valenciano e mãe basca, Ibáñez conhecia o exílio francês desde a adolescência porque o pai foi combatente republicano na Guerra Civil. Proibido de cantar em Espanha, Paco Ibáñez acabava de voltar ao exílio, depois de ter vivido alguns anos em Barcelona. Por isso o tínhamos naquela festa contra as ditaduras peninsulares. Naquela tarde, a lenda estava irritada: na plateia de estudantes, alguns bascos, adeptos do IRA, gritavam contra Espanha.
Paco Ibáñez cantava sobretudo em espanhol, que era a língua comum dos seus - familiares e companheiros, sendo que alguns destes falavam também outra língua de Espanha. Ele também cantava em catalão e euskera. Mais tarde faria um disco com memórias de infância na língua da mãe e cantaria Palavras Para Julia, homenagem à mãe do poeta catalão Juan Augustin Goytisolo, que morrera num bombardeamento franquista.
Comportamento igualíssimo, por exemplo, ao de Joan Manuel Serrat, cantor catalão, que dedicou um álbum ao poeta espanhol Antonio Machado que morreu no dia em que pôs o pé fora da pátria, quando fugia da derrota republicana em princípios de 1939. Serrat cantava desde 1969 «caminante, no hay camino, se hace camino al andar», o que para quem conhece o destino de Machado é tão dolorosamente irónico.
Então, aqueles gritos contra a sua Espanha irritaram Paco Ibañez. Mandou-os calar. Subiu a viola e pôs-se a cantar: «Andaluces de Jaén / aceituneros altivos / decidme en el alma: quién / quién levantó los olivos?» Um valenciano, filho de basca, pôs-se a cantar as palavras de um sevilhano, Miguel Hernández, que seguiu, também em 1939, oposto e igual caminho do de Antonio Machado. Na derrota da liberdade, este fugiu pela fronteira da Catalunha para França; Hernández, pela da Andaluzia com Portugal, foi preso em Moura e, entregue pela polícia de Salazar a Franco, foi condenado à morte e morreu na prisão.
No verão de 1971, como vos disse, tirei um curso intensivo sobre História de Espanha, na Universidade de Grenoble. Cerca de três minutos. Como sou generoso, dou-vos de borla a sebenta onde me formei: aquela canção, Andaluces de Jaén, cantada por Paco Ibáñez, está no Youtube. Infelizmente, desculpem a antiguidade da minha memória, não é a versão de 1971, no campus de Grenoble, de que julgo não haver registo.


Mas a tal do Youtube também serve: é de 2002 e Ibáñez canta no Palau de la Música Catalana, jóia de Barcelona. Oiçam as gentes da plateia a saber os versos da história comum. Do verso de entrada, «Andaluces de Jaén / aceituneros altivos / decidme en la alma: quién / quién levantó los olivos?», a todas as quadras que respondem o mesmo: «No los levantó la nada / ni el dinero, ni el señor / sino la tierra callada/ el trabajo y el sudor...» Oiçam a oração de um povo com um passado comum.
Por falar em Barcelona, agora me lembro, no princípio do texto eu disse que os meus primeiros Jogos Olímpicos foram os de Madrid, em 1992. Enganei-me. Foram nesse ano, certo, mas em Barcelona. Com esta história da pátria catalã oprimida e tal, por um instante convenci-me de que nunca um país opressor proporia organizar os JO a uma colónia desapossada das liberdades... Jogos Olímpicos que, aliás, Madrid nunca teve. Emendo, pois, a minha frase inicial: «Lembro-me tão bem dos Jogos Olímpicos de Barcelona.» E lembro-me que do que gosto mesmo é da vontade conseguida de juntar, de juntar-nos. O que tem sido, ao longo dos séculos, a história dos povos do país ao lado e, desde há 40 anos, a história da sua democracia constitucional.
No fundo, esta crónica é um plágio da resposta que Joan Manuel Serrat - uma vida a amar alto a Catalunha, mesmo quando isso era perigoso - deu, nestes dias de incerteza, à pergunta do jornal El Periodico de Catalunya: e agora? Disse Serrat: «Todos seguiremos a fazer o que fazemos: cada um com o seu trabalho, com os seus sonhos, com o seu mundo. E quantos mais juntos o façamos, melhor. Para todos.» Reparam nas cautelas com que um antigo combatente já fala?

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