quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

A vida das formigas - 2

«”A formiga não gosta de emprestar”, dizia o fabulista [La Fontaine]. É certo, ela não empresta, porque emprestar não é senão um gesto de avarento; dá sem contar e nunca mais reclama. Nada possui, nem sequer aquilo que no seu corpo se encontra. Quase não pensa em comer. Vive não se sabe de quê, do ar do tempo, da electricidade esparsa, de vapores ou de eflúvios. Façam-na jejuar durante muitas semanas sobre o gesso dum formigueiro artificial – e verão se, tendo o cuidado de ali manter um pouco de humidade, ela de facto sofre. Continuará na sua lida, tão esperta, tão activa, como se estivesse os celeiros cheios. Uma gota de orvalho farta o seu estômago privativo. Tudo o que ela busca e acumula sem descanso, através de perigos mortais, é destinado ao odre social, ao insaciável saco da comunidade; aos ovos, às larvas, às ninfas, às companheiras e até às inimigas. A formiga é, em tudo e por tudo, um órgão de caridade. Trabalhadeira tenaz, ascética, casta, virgem, neutra, isto é, sem sexo, o seu prazer é ofertar a quem o queira o produto inteiro dos seus esforços. A regurgitação deve ser para ela um acto tão deleitoso como, para nós, saborear manjares e vinhos raros. Parece evidente que a natureza incorporou na regurgitação volúpias análogas às doa mor, que lhe é interdito. A formiga que regurgita deitando as antenas para trás, como acentua Augusto Torel, toma um ar extasiado e, visivelmente, experimenta mais prazer do que a sua semelhante que se farta de mel. Aliás, na maioria dos formigueiros, a regurgitação é por assim dizer incessante e interrompe-se apenas para o trabalho, para os cuidados da progenitura, para o repouso e a guerra.»
Maurice Maeterlinck – A vida das formigas. 4.ª ed. Lisboa: Clássica Ed., 1950, p. 38-39

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