segunda-feira, 13 de julho de 2009

Um mundo sem regras - 1

Miss Tolstoi,
Vou pedir ao Jad que faça de intermediário para lhe entregar um exemplar deste livro que ando a ler e que estou a adorar. Para, eventualmente, lhe aguçar o apetite, deixo um excerto.



Se, por exemplo, se aceita o postulado segundo o qual a calamidade da nossa época é a «barbárie do mundo muçulmano», a observação do Iraque só poderia apoiar esta impressão. Um tirano sanguinário, que reinou pelo terror durante um terço de século, martirizou o seu povo, delapidou o dinheiro do petróleo em despesas militares ou sumptuárias; invadiu os vizinhos, desafiou as potências, multiplicou as fanfarronices sob os aplausos de admiração das multidões árabes antes de se desmoronar sem um verdadeiro combate; agora que o homem caiu, lá está o país a entrar no caos, lá estão as diferentes comunidades a massacrarem-se entre si, como quem diz: «Estão a ver, para controlar este povo era preciso uma ditadura!»
Se inversamente se adopta como axioma o «cinismo do Ocidente», os acontecimentos explicam-se de maneira igualmente coerente: como prelúdio, um embargo que precipitou todo o povo na miséria e que custou a vida a centenas de milhares de crianças sem nunca privar o ditador dos seus charutos; depois uma invasão decidida sob falsos pretextos, com desprezo pela opinião pública e pelas instituições internacionais, e motivada, pelo emnos em parte, pela vontade de pôr a mão nos recursos petrolíferos; a partir da vitória americana, uma dissolução apressada e arbitrária do exército iraquiano e do aparelho de Estado, bem como a instauração explícita do comunitarismo no centro das instituições, comos e alguém tivesse escolhido deliberadamente mergulhar o país na instabilidade permanente; além disso, as exacções na prisão de Abu Ghraib, a tortura sistemática, as incessantes humilhações, os «danos colaterais», as inúmeras faltas impunes, a pilhagem, a velhacaria…
Para uns, o caso do Iraque demonstra que o mundo muçulmano é impermeável á democracia; para os outros, revela o verdadeiro rosto da democratização à maneira ocidental. Até na morte filmada de Sadam Hussein poderíamos ver quer a ferocidade dos americanos quer a dos árabes.

Para mim, os dois discursos são justos e os dois são falsos. Cada um gira na sua órbita diante do seu público, que o compreende com meias-palavras e que não ouve o discurso adverso. Pelas minhas origens, pelo meu itinerário, posso reclamar-me simultaneamente destas duas órbitas, mas sinto-me cada vez mais afastado quer de uma quer da outra.

Lisboa: Difel, 2009, p. 30-31

1 comentário:

  1. Não estava a perceber a razão desta oferta. E eu estava para comprar este livro e o excerto, assim como as entrevistas que tenho lido dele, na verdade aguçaram-me o apetite.
    Obrigadíssima, MR!

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