Dois Poemas Emblemáticos
Retrato de Miguel Torga, por Guilherme Filipe
Estamos próximo dos idos de Março, do fim do Inverno, neste ano que tem sido áspero e duro, no país e no mundo. No frio, na chuva, nos cataclismos naturais. Ora, áspero, mas natural, foi também o transmontano Miguel Torga (1907-1995), de seu nome de baptismo: Adolfo Rocha. Que era também portador de uma grande ternura humana, mas selectiva. Um dia, encheu o quarto de estudante de Eugénio de Andrade, de flores silvestres que colhera – quando o visitou, em Coimbra. De outra vez, ainda aluno universitário, num intervalo das aulas, deu uma palmada nas traseiras de uma colega. Como ela protestasse, admitiu: “ É ternura, sua bruta!” Eu não sou um incondicional de Torga e até lhe prefiro a prosa à poesia. No entanto, o autor de “Bichos” tem um poema que é toda uma vida. E vale toda uma obra, para mim, pela sua simplicidade e força naturais.
BUCÓLICA
A vida é feita de nadas:
De grandes serras paradas
À espera de movimento;
De searas onduladas
Pelo vento;
De casas de moradia
Caídas e com sinais
De ninhos que outrora havia
Nos beirais;
De poeira;
De sombra de uma figueira;
De ver esta maravilha:
Meu pai a erguer uma videira
Como uma mãe que faz a trança à filha.
Retrato de Alberto de Lacerda, por Rui Filipe
Por outro lado há, por vezes, poemas que têm um início fulgurante, perfeito e, depois, no final afunilam de uma forma redutora ou banal, o que tinha sido um começo surpreendente e feliz. É o caso, entre muitos outros exemplos que poderia citar, de um poema de Alberto Lacerda (1928-2007) a quem Jorge de Sena chamou “um puro poeta”, aquando da publicação, em Londres, de “77 poemas”. Além de bom poeta, Alberto de Lacerda era, também, um grande “diseur” da sua própria poesia. Nem todos os poetas o são. Tive, aliás, o grato prazer de o ouvir. Ora, o poema de que eu falava acima, tem uma grandeza inspirada inicial que, de algum modo, desaparece no verso final, quase fazendo implodir a obra em si. Mesmo assim consegue, no seu todo, ser um belo poema. Tem por título:
DIOTIMA
És linda como haver Morte
depois da morte dos dias.
Solene timbre do fundo
de outra idade se liberta
nos teus lábios, nos teus gestos.
Quem te criou destruiu
qualquer coisa para sempre,
ó aguda até à luz
sombra do céu e da terra,
libertadora mulher,
amor pressago e terrível,
primavera, primavera!
Sol de Primavera
Nota: Esta será a minha última “Escolha Pessoal”. Que termina, exactamente, cinco meses depois de ter feito a primeira. Pesam-me algumas omissões, neste “Clube de Poetas Mortos”, que são de minha frequente leitura: Sá de Miranda, Pessanha, Cesário, Nemésio, Jorge de Sena, Ruy Belo, para só falar de poetas portugueses. Mas antes que o hábito se transforme em rotina e o gosto em obrigação, é salutar que acabe no limiar da Primavera – que é um tempo propício para viver a Poesia… Laus Deo.
P.S.: A LB, com reconhecimento e estima.
Post de Alberto Soares
Retrato de Miguel Torga, por Guilherme Filipe
Estamos próximo dos idos de Março, do fim do Inverno, neste ano que tem sido áspero e duro, no país e no mundo. No frio, na chuva, nos cataclismos naturais. Ora, áspero, mas natural, foi também o transmontano Miguel Torga (1907-1995), de seu nome de baptismo: Adolfo Rocha. Que era também portador de uma grande ternura humana, mas selectiva. Um dia, encheu o quarto de estudante de Eugénio de Andrade, de flores silvestres que colhera – quando o visitou, em Coimbra. De outra vez, ainda aluno universitário, num intervalo das aulas, deu uma palmada nas traseiras de uma colega. Como ela protestasse, admitiu: “ É ternura, sua bruta!” Eu não sou um incondicional de Torga e até lhe prefiro a prosa à poesia. No entanto, o autor de “Bichos” tem um poema que é toda uma vida. E vale toda uma obra, para mim, pela sua simplicidade e força naturais.
BUCÓLICA
A vida é feita de nadas:
De grandes serras paradas
À espera de movimento;
De searas onduladas
Pelo vento;
De casas de moradia
Caídas e com sinais
De ninhos que outrora havia
Nos beirais;
De poeira;
De sombra de uma figueira;
De ver esta maravilha:
Meu pai a erguer uma videira
Como uma mãe que faz a trança à filha.
Retrato de Alberto de Lacerda, por Rui Filipe
Por outro lado há, por vezes, poemas que têm um início fulgurante, perfeito e, depois, no final afunilam de uma forma redutora ou banal, o que tinha sido um começo surpreendente e feliz. É o caso, entre muitos outros exemplos que poderia citar, de um poema de Alberto Lacerda (1928-2007) a quem Jorge de Sena chamou “um puro poeta”, aquando da publicação, em Londres, de “77 poemas”. Além de bom poeta, Alberto de Lacerda era, também, um grande “diseur” da sua própria poesia. Nem todos os poetas o são. Tive, aliás, o grato prazer de o ouvir. Ora, o poema de que eu falava acima, tem uma grandeza inspirada inicial que, de algum modo, desaparece no verso final, quase fazendo implodir a obra em si. Mesmo assim consegue, no seu todo, ser um belo poema. Tem por título:
DIOTIMA
És linda como haver Morte
depois da morte dos dias.
Solene timbre do fundo
de outra idade se liberta
nos teus lábios, nos teus gestos.
Quem te criou destruiu
qualquer coisa para sempre,
ó aguda até à luz
sombra do céu e da terra,
libertadora mulher,
amor pressago e terrível,
primavera, primavera!
Sol de Primavera
Nota: Esta será a minha última “Escolha Pessoal”. Que termina, exactamente, cinco meses depois de ter feito a primeira. Pesam-me algumas omissões, neste “Clube de Poetas Mortos”, que são de minha frequente leitura: Sá de Miranda, Pessanha, Cesário, Nemésio, Jorge de Sena, Ruy Belo, para só falar de poetas portugueses. Mas antes que o hábito se transforme em rotina e o gosto em obrigação, é salutar que acabe no limiar da Primavera – que é um tempo propício para viver a Poesia… Laus Deo.
P.S.: A LB, com reconhecimento e estima.
Post de Alberto Soares
Já nos habituou à sua "Ecolha Pessoal" que pena ser a última.
ResponderEliminarCongratulo-me em ler um conimbricense por adopção. Gostei desta sua viagem à volta de escritores ligados à "Presença".
O Miguel Torga, para mim, nem sempre é fácil de ler. Este seu poema escolhido também faz parte dos meus escolhidos.
Alberto Lacerda conheço menos bem, embora tenha lido alguma poesia.
Todo o post está uma beleza!
Eugénio de Andrade é outro dos meus poetas preferidos. A história das flores silvestres no quarto de Eugénio de Andrade embelezaram-me o dia soalheiro em vésperas de Primavera. Não conhecia esta história!
Miguel Torga era um homem sensível mas não imaginava que ele tivesse feito uma coisa tão BELA!
A sua aspereza, como diz, é o que me dificulta ler alguns dos seus livros tão ligados ao campo.
Obrigada por este pedaço de prosa.
E, agora, todos os sábados, vamos esperar pela sua Escola Pessoal e... vamos ter saudades.
ResponderEliminarParabéns por esta secção e ficamos à espera de novas colaborações e/ou secções.
Quanto ao Torga, também lhe prefiro a prosa à poesia.
Alberto de Lacerda é um poeta que leio de vez em quando.
E obrigada pelo trabalho que colocou em todos estas E.P. com que nos brindou.
ResponderEliminarAgradeço também e sublinho as palavras de MR
ResponderEliminarEu ainda fico esperando o Sá de Miranda.
ResponderEliminarQue fique a promessa de uma "segunda série" oportunamente!
ResponderEliminarFoi um enorme gosto.
Socorro-me de um dos Maiores:
ResponderEliminar"Todas as cousas tem cabo,
seja paz, ou seja guerra..."
e,ainda:
"Assi que seja aqui a fim,
tornem a práticas vivas;
perdestes mea hora em mim
das que chamam sucessivas
estes que sabem latim."
Sá de Miranda.
Muito obrigado a Todos pelas amigas palavras.
Alberto Soares.
:-(((
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