Voltemos a dia 8. A arena encheu-se: e cumpriu-se a premonição das cinco gerações. Desde crianças de colo trazidas pelos pais até nonagenários de andarilhos e cadeiras de rodas, a arena brilhava com o disparar dos flashes das máquinas fotográficas e dos telemóveis, transformando-a num firmamento. Ouvia-se falar alemão, holandês, italiano, francês; vêem-se sikhs de turbante e grupos de chineses cruzavam-se com pequenos bandos de japonesas com máscaras da gripe; os saris misturavam-se com os sotaques sul-americanos do espanhol; ouvia-se português com sotaques de Portugal e do Brasil; os sotaques norte-americanos mapeavam os Estados Unidos. O primeiro anel era completamente circundado com pessoas em cadeiras de rodas, como se de uma tropa de elite se tratasse, visão algo arrepiante pela demonstração de devoção.
A leitura do programa foi decepcionante: todo o segundo acto seria dedicado ao conto infantil. Apenas o primeiro acto traria os musicais do cinema e da Broadway, mas mesmo esses não eram o que se poderia esperar de um espectáculo com Julie Andrews: Três músicas apenas de “Música no Coração”, nada de “Mary Poppins”, nada de “Darling Lili”, nada de “Millie, Rapariga Moderna”, nada de “Victor Victoria”, ou dos seus êxitos na Broadway, “My Fair Lady” ou “Camelot”. É verdade que se recuperava o “Cinderella” de Rodgers and Hammerstein de 1957, uma produção em directo para televisão que bateu todos os recordes de audiência à data. E Julie Andrews tinha interpretado “O Rei e Eu” em estúdio em 1992, com Ben Kingsley. Mas não, as canções seriam de “Oklahoma!”, “State Fair”, “South Pacific” e “Carrossel”, entre outras obras menos conhecidas. Voltando atrás, é verdade que o anúncio indicava que se interpretariam clássicos de Rodgers e Hammerstein, o que não se depreendia é que seria em exclusivo. Bem. Um pouco decepcionante, mas adiante.
O espectáculo começou auspicioso, com um clip da abertura do clássico “Música no Coração” servindo para introduzir Julie Andrews. A arena explodiu em aplauso e a ovação de pé durou e durou. Agradecendo a recepção, fez o aviso reiterado das limitações vocais pós-operações, “I no longer have the voice of that girl you saw up there on the screen”, que lhe rendeu um aplauso redobrado – ninguém esperava uma jovem de 20 anos e a fragilidade reconhecida granjeava-lhe ainda maior ternura. Mesmo assim, o aviso foi mitigado com a referência a poder trazer a casa abaixo com a sua interpretação de “Ol’ Man River”. Foram apresentadas cinco vozes do West End e da Broadway, que a coadjuvariam em palco.
Para o espanto da audiência, a partir desse momento, Julie Andrews passou para o papel de MC (mestre de cerimónias), raramente juntando a sua voz aos demais cantores (que eram bons, muito bons) e saindo frequentemente de palco (o que em termos estritos era legítimo, dado que durante longos períodos de tempo não estava lá a fazer nada).
Fora do previsto no programa, cantou duas músicas: “A Cock-Eyed Optimist” (de “South Pacific”, sobre um optimismo inabalável: “With a thing called hope / And I can't get it out of my heart! / Not this heart...”) e “My Funny Valentine” (com uma nova orquestração, infelizmente fraca e que alterava os padrões tradicionais da canção). A voz não tinha o mesmo alcance (e era minada aqui e ali por insegurança), mas era a mesma: e era por isso que a audiência lá estava. Nestes dois momentos, a arena voltou a erguer-se em aplauso – a homenagem sentida à cantora que, um pouco a medo, se atrevia a voltar cantar em palco em frente a milhares de pessoas. E o facto surpreendente é que, a voz não sendo a mesma, é muito melhor do que provavelmente Julie Andrews pensa. Ou sente.
"My Funny Valentine"
"A Cock-Eyed Optimist"
"Do-Re-Mi"
"Edelweiss"
Mantém a mesma classe e tom. Reconhecer-se-ia de olhos fechados.
ResponderEliminarGostei de ouvir/ver todos os vídeos. Claro, "Do-Re-Mi" e "Edelweiss" são uma ternurinha!
Encantador!
Texto bem escrito! Obrigado pela excelente e sentida reportagem.
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