SOMOS TODOS RUI COSTA
Quem nos dera. A dura realidade é que só o Rui Costa é o Rui Costa, por mais surpreendente que isso seja.Quando eu era pequeno sentia uma animosidade muito grande em relação aos meus pais. Todos os miúdos, em certo momento da infância, sentem animosidade em relação aos progenitores. Ou porque eles os amam de menos, ou porque os amam de mais… Enfim, é difícil agradar aos putos. Eu estava melindrado com os meus porque o meu pai não era oriental e a minha mãe não era africana. Eles garantiram-me que não estava nas mãos deles deixarem de ser caucasianos e eu, estúpido, acreditei. O meu sonho era ser o Shéu. Ter dois pais europeus tornava as coisas bastante mais difíceis. Já para não falar na minha falta de talento para o jogo, que também não era nada negligenciável. O Shéu, não sei se se lembram, era um tigre de pantufas. No terceiro anel, não se ouvia o homem a pisar a relva. Para dizer a verdade, no terceiro anel não se ouvia ninguém a pisar a relva, sobretudo quando aquele consócio bêbado ia para lá gritar. Mas os passos do Shéu, parece que se ouviam ainda menos. E eu queria ser o Shéu. Notem: não queria ser como o Shéu. Queria ser o Shéu. O adepto está-se borrifando para a sua individualidade. No meu caso era facílimo, porque a minha individualidade era bem pouco interessante. Se ainda hoje é o que se vê, imaginem isto com seis ou sete anos. Mas qualquer adepto entregaria de bom grado a própria alma, embrulhadinha e tudo, ao demónio, para se metamorfosear no ídolo.Nos últimos dez anos, todos os benfiquistas quiseram ser o Rui Costa. Eu ainda quero. Se outros já acordaram transformados em baratas, ninguém me convence de que é impossível acordar transformado no maestro. O Rui Costa é um adepto igual aos da bancada, mas com talento proporcional ao benfiquismo. Ali a jogar, é mais do que ele. Somos nós. É exactamente aquilo que nós queríamos ser. E ele joga precisamente como um adepto jogaria: com a cabeça levantada. No fundo, ele quer é ver o jogo, não é olhar para a bola. O Rui Costa só sabe que as bolas vão mudando de modelo pelos anúncios da televisão. O maestro não olha para a bola desde os juvenis. Não precisa. A bola é que está com atenção ao que ele faz.Quando, esta semana, o Rui Costa fez o que costuma fazer, toda a gente se lembrou de Joe Berardo. Eu próprio pensei que o pobre comendador daria metade da fortuna para poder retirar o que tinha dito. Se tivesse juízo, aliás, dar-ma-ia a mim. Mas não. No fim do jogo com o Copenhaga, o comendador disse que tinha feito bem em espicaçar o Rui. Pois, pois. Se o Berardo insultar a equipa toda, somos campeões da Europa vinte anos seguidos. «Quim, fuck you! Luisão, fuck you! David Luís, fuck you!» E por aí fora, até ao ponta-de-lança. Anda o Mourinho a perder tempo com modelos tácticos, quando, afinal, basta ser malcriado.Na verdade, e com pena minha, não basta. Se insultos melhorassem o desempenho no estádio, o árbitro era sempre o melhor em campo.No futebol, ganhar é como escovar os dentes: é mais fácil se houver pasta. Ora aqui está um aforismo que o professor Jesualdo andou a rondar mas não foi capaz de exprimir como deve ser. Fica para a próxima.
Ricardo Araújo Pereira
In: A Bola, Lisboa, 19 Ago. 2007
(retirado de http://www.canalbenfica.com/index.php?HPSESSID=d29eea6e1e45fdf9a60c0b4014817437&topic=1796.msg31415#msg31415)
OÁSIS
Que a verdadeira equipa de Madrid é o Real Madrid e as outras são impostoras prova-o o facto de que alguns adeptos do Barca a odeiam a ponto de preferir perder se também perde o Madrid em vez de ganhar se também ganha o seu particular Inominável. Por isso, suponho, viveram tantos anos instalados na derrota, sua verdadeira meta e aquilo que lhes permite pôr em prática a sua maior inclinação: a Queixa. Tanto eles como os seguidores das outras equipas tentam justificar-se pensando que ao odiar o Madrid odeiam a Franco e a todos os governos (bom, a todos menos ao da Generalitat catalã). Mas do mesmo modo que a cidade é muito mais impenetrável do que parece e as interpretações que dela fazem os forasteiros são sempre turísticas e vulgares (com Galdõs, o canário à cabeça), qualquer madrileno sabe que a equipa de Chamartín é, de todos os nossos clubes, a menos direitista, tanto no passado como no presente. O Madrid foi monárquico, mas – mais ou menos como o diplomata Areilza – razoavelmente civilizado, razoavelmente cortês. Hoje é presidido por um homem que foi acusado de pertencer ao KGB (recordo a primeira página que lhe dedicou Cambio 16: «O homem de Moscovo», suponho que Ramóm Mendoza a terá mandado emoldurar), coisa de que se não pode gabar, nem que seja só pelo seu lado aventuroso, nenhum outro presidente de clube. Não nos faltaram jogadores activistas, como Miguel Angel e Del Bosque, para citar dois não muito afastados. E esta época Valdano outorga-nos um esquerdismo que muito se agradece. E se há ultras com bandeiras pré-constitucionais no campo e outras coisas, temo que isso não seja culpa do Madrid, como também não é culpa de Quevedo que Francisco Umbral seja fanático da sua obra: uma pessoa nunca é responsável pelos amores infelizes que inspira.
Tudo isto vem à colação para explicar que, apesar da má e falsa fama, se tornasse adepto do Madrid uma criança de seis anos, nascida em Chamberí, cujo pai saiu maltratado da guerra (incluindo a prisão), e que além disso andava num colégio liberal, o único misto que existia nessa altura, fora os liceus estrangeiros. Não era um caso isolado: nesse colégio de filhos de perdedores bélicos e políticos (havia sobrinhas de Garcia Lorca e netos de Ortega, e também de perseguidos anónimos), a maioria das crianças era já do Real Madrid e, ao contrário, o único padre, o draculiano professor de Religião, castigava invariavelmente toda a turma às segundas-feiras se o Atleti tivesse perdido.
O responsável máximo por aquele entusiasmo chamava-se, não restam dúvidas, Di Stéfano. Mas havia mais qualquer coisa: o Madrid não era matreiro nem tinha medo, e possuía dramatismo. Parecem coisas triviais, mas na cidade da infância tudo o resto era malandrice, e tentava inspirar medo, e era mais sórdido que dramático. O Madrid era um oásis como o cinema aos sábados. É por isso que nós, seus incondicionais, somos capazes de aguentar as derrotas mas não uma equipa que se pareça com as outras ou seja mecânica ou albergue temores, porque nestas alturas da vida as traições não se suportam. Da nossa vida e da vida mais longa do Real Madrid.
1994
Javier Marías
In: Selvagens e sentimentais / trad. Salvato Telles de Menezes. Lisboa. Dom Quixote, 2002, p. 19-20
Que a verdadeira equipa de Madrid é o Real Madrid e as outras são impostoras prova-o o facto de que alguns adeptos do Barca a odeiam a ponto de preferir perder se também perde o Madrid em vez de ganhar se também ganha o seu particular Inominável. Por isso, suponho, viveram tantos anos instalados na derrota, sua verdadeira meta e aquilo que lhes permite pôr em prática a sua maior inclinação: a Queixa. Tanto eles como os seguidores das outras equipas tentam justificar-se pensando que ao odiar o Madrid odeiam a Franco e a todos os governos (bom, a todos menos ao da Generalitat catalã). Mas do mesmo modo que a cidade é muito mais impenetrável do que parece e as interpretações que dela fazem os forasteiros são sempre turísticas e vulgares (com Galdõs, o canário à cabeça), qualquer madrileno sabe que a equipa de Chamartín é, de todos os nossos clubes, a menos direitista, tanto no passado como no presente. O Madrid foi monárquico, mas – mais ou menos como o diplomata Areilza – razoavelmente civilizado, razoavelmente cortês. Hoje é presidido por um homem que foi acusado de pertencer ao KGB (recordo a primeira página que lhe dedicou Cambio 16: «O homem de Moscovo», suponho que Ramóm Mendoza a terá mandado emoldurar), coisa de que se não pode gabar, nem que seja só pelo seu lado aventuroso, nenhum outro presidente de clube. Não nos faltaram jogadores activistas, como Miguel Angel e Del Bosque, para citar dois não muito afastados. E esta época Valdano outorga-nos um esquerdismo que muito se agradece. E se há ultras com bandeiras pré-constitucionais no campo e outras coisas, temo que isso não seja culpa do Madrid, como também não é culpa de Quevedo que Francisco Umbral seja fanático da sua obra: uma pessoa nunca é responsável pelos amores infelizes que inspira.
Tudo isto vem à colação para explicar que, apesar da má e falsa fama, se tornasse adepto do Madrid uma criança de seis anos, nascida em Chamberí, cujo pai saiu maltratado da guerra (incluindo a prisão), e que além disso andava num colégio liberal, o único misto que existia nessa altura, fora os liceus estrangeiros. Não era um caso isolado: nesse colégio de filhos de perdedores bélicos e políticos (havia sobrinhas de Garcia Lorca e netos de Ortega, e também de perseguidos anónimos), a maioria das crianças era já do Real Madrid e, ao contrário, o único padre, o draculiano professor de Religião, castigava invariavelmente toda a turma às segundas-feiras se o Atleti tivesse perdido.
O responsável máximo por aquele entusiasmo chamava-se, não restam dúvidas, Di Stéfano. Mas havia mais qualquer coisa: o Madrid não era matreiro nem tinha medo, e possuía dramatismo. Parecem coisas triviais, mas na cidade da infância tudo o resto era malandrice, e tentava inspirar medo, e era mais sórdido que dramático. O Madrid era um oásis como o cinema aos sábados. É por isso que nós, seus incondicionais, somos capazes de aguentar as derrotas mas não uma equipa que se pareça com as outras ou seja mecânica ou albergue temores, porque nestas alturas da vida as traições não se suportam. Da nossa vida e da vida mais longa do Real Madrid.
1994
Javier Marías
In: Selvagens e sentimentais / trad. Salvato Telles de Menezes. Lisboa. Dom Quixote, 2002, p. 19-20
Força, Portugal!
Continua a ser uma escolha Pessoal notável!
ResponderEliminarE, a esta hora, já se acabou o "sonho" de Portugal, infelizmente.
Mas "acaso, tac!, o nosso destino vai mudar?" (cito de memória o O'Neill)
Obrigada!
ResponderEliminarPois foi. E agora, torço pela Espanha.
Lá virá, lá virá... o nosso O'Neill.