domingo, 4 de julho de 2010

O Futebol nas Letras - 14

A MÃO DE QUEM?

Uma das imagens mais recorrentes do futebol nos últimos vinte anos tem sido a da "mão de Deus", a que Diego Maradona recorreu para ilustrar um dos golos que marcou à Inglaterra no Mundial do México, em 1996. Graças ao providencial soco do controverso argentino na bola, a sua equipa chegou à final e acabou por ganhar o título mundial – e, se bem nos lembramos, já tinha havido, nos campos portugueses, uma mão de Vata que se revelou providencial em certa vitória do Benfica.
Cultivando hábitos menos arreigados de atribuição da responsabilidade das cambalhotas do destino à intervenção divina, ainda nenhum francês atribuiu o gesto irreflectido de Abel Xavier a um qualquer humor omnipotente. Ainda assim, e mesmo que não queiram agradecer a Deus a sorte que lhes calou, ficaria muito bem aos gauleses uma palavra de gratidão e reconhecimento para com o defesa-direito português; e, já agora, um "muito obrigado" ao árbitro auxiliar com olho de águia que conseguiu ver sozinho aquilo que a maioria de nós só observou após várias repetições em câmara lenta.
Portugal-França, 2000
Abel Xavier está, de resto, condenado a ser o homem de quem se fala no rescaldo do Portugal-França que nos afastou do sonho (irreal?) de uma presença na final do Campeonato da Europa. E se não tivesse falhado a cabeçada com que correspondeu a um cruzamento de Figo? E se não tivesse mexido com a mão para defender a bola? E se, dois minutos antes, João Pinto tivesse sido desviado por um providencial sopro que atirasse a bola para dentro da baliza? E se nos limitássemos a avaliar a actuação irrepreensível do lateral-direito que não teria precisado do penteado extravagante para dar nas vistas?
Penso que o disse já numa destas crónicas, mas os verdadeiros apreciadores do futebol sabem que a modalidade está cheia de ocorrências relativamente aleatórias – uma enorme sucessão de "ses" – sem as quais este desporto não seria o que é. Algo que se resumisse à frieza matemática do xadrez ou à linear geometria do bilhar não arrastaria multidões apaixonadas; não provocaria alegrias extremas, nem invocaria as lágrimas dos vencidos. Ora o futebol é precisamente o campo em que os pequenos se podem fazer fortes e onde é possível vencer deslumbrando quem assiste ou dando primazia à pura mecanização, ao calculismo, à frieza e ao preparo físico.
Selecção Nacional de Futebol, 2000
Se olharmos para o que Portugal fez neste Europeu, facilmente se concluirá que "a nossa selecção" foi muito mais longe do que nos seria permitido esperar se o futebol fosse uma simples equação. Sonos um país pequeno, pobre, com poucos recursos, periférico e com baixos índices de produtividade, mas a equipa de Humberto esteve entre as quatro maiores da Europa, com um futebol rico e unanimemente elogiado; Nuno Gomes e Sérgio Conceição figuram entre os mais concretizadores da competição e Figo está definitivamente no centro do planeta do pontapé na bola. Conseguíssemos todos nós, em todos os sectores, fazer o mesmo que esta equipa alcançou e teríamos, por certo, muito pouco a lastimar. Viveríamos num país melhor e nem nos incomodaríamos se um qualquer suposto Deus nos viesse prejudicar, de vez em quando, com a sua perversa mão.
[Jun. 2000]
Manuel Jorge Marmelo (1971-)
In: Paixões e embirrações. Porto: Campo das Letras, 2001, p.109-110

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