quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Crónicas de Clarice - 14

ANUNCIAÇÃO

Tenho em casa uma pintura do italiano Savelli-depois compreendi muito bem quando soube que ele fora convidado para fazer vitrais no Vaticano.

Por mais que olhe o quadro não me canso dele. Pelo contrário, ele me renova.

Nele, Maria está sentada perto de uma janela e vê-se pelo volume do seu ventre que está grávida. O arcanjo, de pé ao seu lado, olha-a. E ela, como se mal suportasse o que lhe fora anunciado como destino seu e destino para a humanidade futura através dela, Maria aperta a garganta com a mão, em surpresa e angústia.

O anjo, que veio pela janela, é quase humano: só suas longas asas é que lembram que ele pode se transladar sem ser pelos pés. As asas são muito humanas: carnudas, e seu rosto é o rosto de um homem.

É a mais bela e cruciante verdade do mundo.

Cada ser humano recebe a anunciação: e, grávido de alma, leva a mão à garganta em susto e angústia. Como se houvesse para cada um, em algum momento da vida, a anunciação de que há uma missão a cumprir.

A missão não é leve: cada homem é responsável pelo mundo inteiro.

(21 de Dezembro de 1968)

- Clarice Lispector, in A DESCOBERTA DO MUNDO,2ªed, Rio de Janeiro, Nova Fronteira,1984.

3 comentários:

  1. Clarice, ser humano complexo, foi do melhor que a literatura brasileira produziu na segunda metade do século XX. Tentei encontrar a tela de Savelli a que ela se refere no texto, mas sem sucesso.

    Regiani: Bom Natal, que desse lado do mundo é bem mais quente do na Velha Europa.

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