Comprei este fim de semana a reprodução da primeira (?) edição do auto de Gil Vicente, "A barca do Inferno", impressa com o título Auto de Moralidade.
Começa a declaração e argumento da obra:
Primeiramente, no presente auto, se figura que, no ponto que acabamos d espirar, chegamos subitamente a um rio, o qual per força havemos de passar em um de dous batéis que naquele porto estão, a saber, um deles passa pera o Paraíso, e o outro pera o Inferno; os quais batéis tem cada um seu arrais na proa: o do Paraíso um Anjo; e o do Inferno, um arrais infernal e um Companheiro.
O primeiro interlocutor é um fidalgo que chega com um pajem que lhe leva um rabo mui comprido e uma cadeira d espaldas.
E olhando para a gravura que acompanha o texto ficamos a ver a cena, conforme Gil Vicente a queria representar.
Lá está o fidalgo com a capa de cauda [rabo] comprido, transportada pelo pajem; e a cadeira, dobrada, ao ombro; a barca com o diabo (que mais parece um "dragão" alado) acompanhado; assim como a barca com o anjo.
É raro haver uma figuração tão próxima entre o texto e a gravura.
Não tem inscrito impressor. Aparece, normalmente, referenciada como tendo sido impressa cerca de 1520. Mas existe na obra um ponto que tem passado em branco e que pode ajudar a recuar a data da sua impressão.
Diz no fim:
"Autos das barcas que fez Gil Vicente per seu [sic] mão. Corrigida e imprimido per seu mandado. Pera o qual e [sic] todas suas obras tem privilégio del Rei nosso senhor. Com as penas e do teor que pera o Cancioneiro Geral Português se houve." (Português actualizado)
A edição do Cancioneiro Geral [Português] referida, aparentemente, só pode ser a edição feita entre Almeirim e Lisboa, por Hermão de Campos, no ano de 1516.
Fará sentido, em 1520, ainda referir os privilégios de uma obra que tinha sido impressa em 1516? Não me parece. Contudo a edição de 1516, conforme é hoje conhecida, também não apresenta impresso o alvará com privilégio.
Estará a edição de 1516 incompleta? Ou houve uma outra edição do Cancioneiro, que hoje não se conhece completa, e por isso haver as variantes que Helga Maria Jüsten (Incunábulos e Post-Incunábulos, Lisboa, CEH, 2009) aponta para a impressão de 1516? As respostas a estas dúvidas ajudariam a datar este exemplar.
Aparentemente esta obra de Gil Vicente terá de ser recuada para o ano de 1516-1517, sendo obra do impressor Hermão de Campos. E será que os tipos tipográficos podem ser de Hermão de Campos? Talvez. Mas só Helga Jüsten poderá responder, com toda a propriedade e rigor.
Mas eu (pelo faro, que não é ciência) encontro semelhança no traço do artista que abriu esta gravura da obra de Gil Vicente e no traço da gravura do Boosco Deleytoso, este impresso em 1515, por Hermão de Campos.
Post para Helga, com admiração.
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