Enquanto lia hoje, no Metro, a crónica de Ferreira Fernandes no DN (quem é que já está sorrir?), iam-se desfiando, na minha memória, situações que para mim tiveram importância semelhante (penso eu) àquela que o levou a dar esta espécie subtítulo ao seu texto: «Segue uma lista de provas de como não fico desiludido caso Stephen Hawking esteja certo e não haja Paraíso, depois. Já tive antes.»
Retiro da crónica algumas ocorrências para poderem ter uma ideia do que falo:
«[...] Frente a um quadro de Canaletto contar as personagens, descobrir sempre mais e, quando por três vezes a conta bater certo, aceitar que o cão que aparece atrás de uma gôndola também vale - recontar. [...]
Retiro da crónica algumas ocorrências para poderem ter uma ideia do que falo:
«[...] Frente a um quadro de Canaletto contar as personagens, descobrir sempre mais e, quando por três vezes a conta bater certo, aceitar que o cão que aparece atrás de uma gôndola também vale - recontar. [...]
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Paris.louvre.winged.500pix.jpg
«Atravessar uma fazenda de açúcar de manhãzinha, cheirar a manhã, uma macaca saltar de uma palmeira para a outra com o saguim agarrado à barriga, topar que o meu pai sorriu porque sabe que também vi - e nada ter dito na cabina do camião. [...]
«Ter vinte anos, não ter dinheiro nem documentos, subir a escadaria do Louvre e ser apresentado à Vitória de Samotrácia. Nunca ter ouvido falar de Woody Allen, entrar no cinema e ver Bananas. Nem saber quem era Émile Ajar, achar Romain Gary ridículo, abrir um livro e ler La vie devant soi. Entrar numa igreja que eu julgava qualquer e dar com o Moisés, de Miguel Ângelo. [...] Julgar que se despreza o fado e um dia, aos 17 anos, ter ouvido Carlos Ramos n'A Toca, e logo Não venhas tarde. Julgar que se viu Garrincha driblar. [...]
«Subir ao Bairro Alto para ir trabalhar numa manhã de sábado. [...]»
«Atravessar uma fazenda de açúcar de manhãzinha, cheirar a manhã, uma macaca saltar de uma palmeira para a outra com o saguim agarrado à barriga, topar que o meu pai sorriu porque sabe que também vi - e nada ter dito na cabina do camião. [...]
«Ter vinte anos, não ter dinheiro nem documentos, subir a escadaria do Louvre e ser apresentado à Vitória de Samotrácia. Nunca ter ouvido falar de Woody Allen, entrar no cinema e ver Bananas. Nem saber quem era Émile Ajar, achar Romain Gary ridículo, abrir um livro e ler La vie devant soi. Entrar numa igreja que eu julgava qualquer e dar com o Moisés, de Miguel Ângelo. [...] Julgar que se despreza o fado e um dia, aos 17 anos, ter ouvido Carlos Ramos n'A Toca, e logo Não venhas tarde. Julgar que se viu Garrincha driblar. [...]
«Subir ao Bairro Alto para ir trabalhar numa manhã de sábado. [...]»
Fiquei a saber que Romain Gary, que é um pseudónimo, escreveu sob outros nomes. Nunca li La vie devant soi. Não sei como é, mas há muitos livros que me têm levado ao Paraíso. Também fiquei deslumbrada a olhar para a Vitória de Samotrácia, quando aos dezanove anos fui ao Louvre.
E não pude deixar de me lembrar do que senti ao ver Nureyev dançar; da A morte e vida severina, com Chico Buarque (quando ainda não se sabia quem ele era); da primeira vez que vi Paco Ibáñez; de Leonard Cohen; etc. Também do fascínio que tenho por Garrincha (de que já aqui falei) e de ter visto George Best a jogar em Manchester (eu que não percebo nada de futebol).
Passear no Bairro Alto, visitar as livrarias, mas também ir do Campo Grande ao Cais do Sodré a pé, sempre ao sábado de manhã...
De um dia ter estado com um livro, acabado de sair, de Pérez-Reverte na mão, não o ter comprado, e 30 minutos depois dar de caras com ele (o escritor), ao subir a Av. da Liberdade.
Ver O rapaz do alaúde, de Caravaggio, no Hermitage; de ter visto muita outra pintura e muitos filmes, ouvido muita música, que nem consigo inumerar, que nos perturba. De entrar no Café Slavia em Praga, frequentado por Vaclav Havel, que muito admiro.
De férias e sítios maravilhosos: o Douro, o Gerês, Espanha, a Itália, a Inglaterra, a Noruega... e Nova Iorque, porque não esperava.
Até no trabalho tenho tido sorte - muitas horas de imenso prazer; e da família (nos sentidos estrito e amplo), já que, toda a vida, foi uma família alargada aos amigos.
Mas principalmente de ter vivido o dia 25 de Abril e seguintes. E de viver aqui, porque, apesar de tudo, isto está incomparavelmente melhor.
Vi Joan Baez em Estrasburgo há muitos anos.
13 comentários:
Interessante!
Há alguns pontos de contacto da vivência de cada um e da crónica.
Bom sábado!
Bom sábado também para si, Ana, e para todos.
Entretanto, voltei aqui, porque, depois de, há pouco, ter visitado A Casa Improvável, lembrei-me: como me esqueci da emoção que tive ao ver Béjart no Coliseu, em 1968? E quando ele voltou ao Coliseu, em 1974 ou 1975. Mas já falei disso quando postei uns excertos de umas entrevistas dele. Obrigada, c.a.!
E também quando vi Yvette Chauviré, já nada jovem, no Tivoli, a dançar a Morte do Cisne, com uns braços que nunca mais vi. Etéreos...
Lindíssimo texto, MR, pena é que só agora tenha decidido dizer de si. Porque há coisas que se perdem, para sempre, se não são ditas na altura própria ou quando o coração as grita.
Obrigado por estas suas palavras que li com imensa atenção e grande agrado amigo.
Gostei muito deste "fio de memória". Muito obrigado. Não li a crónica do F.Fernandes, mas também senti noutros casos a empatia com o cronista que nos leva a vencermos a nossa própria reserva de revelar, de dizer.Reserva, aliás, completamente contra a maré nestes tempos em que tudo se mostra e diz. Mas, quase sempre, banalidades e frivolidades.
MR,
Há uns tempos coloquei aqui no Prosimetron, e não só, Bejart-Adagietto, sinfonia nº 5 de de Mahler, bailado, precisamente, por Jorge Donn.
Tentei localizá-lo mas não consegui.
Conhecia o vídeo que c.a. colocou é muito belo!
Luís,
É verdade há muitas banalidades e frivolidades.
Que lindo texto, MR. E neste dia, que é de alguma maneira especial para mim, fez-me rever as minhas emoções na descoberta de cada coisa importante - vejo-o, mesmo se na altura não vi - da minha vida que vai ficando para trás. Bom saber de si. Devíamos saber mais dos amigos de quem gostamos e admiramos. Continue, por favor.
Obrigada a todos.
Ana, desculpe não me recordar do Adagietto coreografado pelo Béjart. Lembro-me que colocou um vídeo com o Jorge Donn a dançar, mas mais nada... E se não nos lembramos é, como diz o Jad, não conhecemos.
Ou então, terá sido nalguma altura em que não vi. As minhas desculpas.
Obrigado pelas recordações. Para mim algumas não são novidades... e a MR a falar, a falar com os amigos da sua família, é sempre assim. O pior é que fica calada enquanto não vence as barreiras...
Obrigada, e algumas destas até as partilhámos juntos. Poderia (e deveria) também ter falado da Última Ceia de Leonardo da Vinci, da Capela de Santa Cecília em Bolonha, de como em cinco minutos conseguiste que entrássemos no Scala para ver o Dom Quixote (bailado), etc. E de Turim - uma cidade mágica, pelo ambiente, pelos cafés, e até pelos mexilhões... Tudo isto um pouco, pelo inesperado.
E uma certa viagem de camioneta Lisboa-Paris-Lisboa para ir ver a exposição da Revolução Francesa...
Mas vou parar por aqui. Não vos chateio mais.
:-)))))))))))))))))) [grande, grande sorriso]
Resta-me apenas juntar-me aos comentários anteriores: um belo texto.
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