" (...) Mistério e enigma, um revela-se e comunica-se, o outro decifra-se. Um mistério não pode ser analisado, mas comunicado. Um enigma pode ser analisado. Um mistério, que se comunica como um segredo, é uma coisa que alguém sabe ou chega a saber por contacto ou iniciação, e que pode ser comunicado (podendo haver restrições regradas quanto à extensão dessa comunicação, quando o segredo pertence a uma associação de iniciados, por exemplo, os mistérios de Elêusis).
Um enigma é uma dificuldade que se apresenta resolvida sob a forma de adivinha e, portanto, a chave da resolução não é oferecida exteriormente à própria dificuldade ( quem depara com um enigma, sabe que a sua chave está guardada no próprio enigma) . Um enigma é uma forma de compreensão que se apresenta sob o aspecto de desafio, em que se pode perder ou ganhar ( o enigma da esfinge, por exemplo) . O mistério diz respeito a qualquer coisa que se sabe ( tem a ver com uma narrativa e uma visão, e não com uma forma de conceptualização cifrada, que é a terra de origem do enigma) . O mistério, o segredo, não é uma compreensão, mas o reconhecimento de um facto revelador do que é vivo ou foi vivo, uma visão que transcende o equilíbrio ou a ordem correntes, obrigando a regras de comunicação. É insuportável saber um segredo e guardá-lo para si próprio ( um dos exemplos populares mais eloquentes é a história do príncipe de orelhas de burro ) , tem de haver maneira de o revelar a alguém.
No corpo vivo, no corpo que nasce, no corpo que se eleva e cai, percebemos reunidos o mistério e o enigma, percebemos um silêncio por decifrar, vozes ocultas à espera de interpretação, vemos um segredo que se abre, um segredo à espera de um vaso comunicante, sedento de pertencer a alguém.
Os versos da Nau Catrineta brilham. "
- Maria Filomena Molder, Princípios de método-2 , in A IMPERFEIÇÃO DA FILOSOFIA, Relógio D'Água Editores, 2003, p. 109-110.
4 comentários:
Quer com isto dizer que, o "mistério" só contempla alguns, enquanto o "enigma" pode chegar a quem o encontrar e o decifrar?
Será esta a imperfeição da Filosofia? Tornar-se uma questão social?
Um é narração/comunicação e o outro é compreensão/conceptualização.
Estou intrigada. Não compreendo onde está a imperfeição.
Obrigada por me fazer pensar... e ficar confusa. A imperfeição da Filosofia é um enigma.
Dá para ocupar uma parte de Domingo. Pensar sem agir...
Caro Anónimo,
Relativamente à distinção entre "mistério" e "enigma", parece-me que estamos de acordo quanto às definições propostas por Filomena Molder, a natureza do mistério residiria na sua restrição aos iniciados, enquanto que o enigma seria uma categoria "mais aberta". Quanto à "imperfeição da filosofia" embora seja este o título deste conjunto de ensaios de M.F.M, apenas na verdade um deles tem esse título em particular, ocupando p.37 a 41 do volume. Tenho usado o título genérico do livro para divulgar o pensamento de Molder aqui no blogue.Para Molder,interpretando desde logo Sócrates( via Platão, naturalmente), a imperfeição da filosofia reside na sua "natureza incompleta" (p.39), de insatisfação e permanente inquirição.
Viva,
Obrigada.
Afinal, o enigma era demasiado fácil porque chegara à "natureza incompleta" da Filosofia num ápice.
A beleza reside na procura da perfeição.
Platão é, entre os filósos, o mais belo.
Envio-lhe este excerto do Banquete ou do Amor para homenagear o seu post.
"(...)direi que Sócrates é semelhante a esses silenos que se encontram expostos nas oficinas dos estatuários, que os artistas representam com avenas e flautas nas mãos, e quando se abrem, verifica-se que têm no interior, a estátua de um seus!"
Elogio de Sócrates in Platão, O Banquete ou do Amor, Coimbra, Atlântida Editora, sd,p. 101.
Onde está seus é deus!
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