Lisboa: Companhia das Letras, 2015
Um livro que eu queria ler e que foi um presente de Natal. Comecei a lê-lo ontem e quase que o acabei.
«E era nos livros que eu me escorava, desde muito pequeno [...]. E quando não havia ninguém por perto, eu passava horas a andar de lad rente às estantes, sentia certo prazer em roçar a espinha de livro em livro. Também gostava de esfregar as bochechas nas lombadas de couro de uma coleção que, mais tarde, quando já me batiam no peito, identifiquei como os Sermões do padre António Vieira. E, numa estante acima dos Sermões, li aos quatro anos a minha primeira palavra: GOGOL.»
Havia muitas baratas em casa, devido aos livros: «Mamãe também estava familiarizada com as baratas, quando casou sabia bem o que a esperava. Não fosse uma mulher valente, teria dado meia-volta ao entrar pela primeira vez na casa do meu pai. Calculo que então, aos trinta e tantos anos, meu pai já tivesse quase a metade dos livros que juntou na vida. E, antes da minha mãe, imagino que essa livralhada, além de empilhada no escritório, atulhasse os dois quartos vagos dos futuros filhos, em forma de escombros de pirâmides astecas. Mamãe tratou logo de erguer estantes pelas paredes de sobrado, e ao engravidar decorou o quarto do bebê com livros de linguística e arqueologia, além da mapoteca, dos espanhóis e dos chineses. Para o meu quarto, dois anos mais tarde, reservou os escandinavos, a Bíblia, a Torá, o Corão e metros e metros de dicionários e enciclopédias. [...] Só em livros raros [meu pai] gastou metade da herança, ao vender a tipografia que meu avô Arnau de Hollander possuía no Rio de Janeiro. O suprassumo da biblioteca eram onze volumes hospedados num nicho da sala de visitas, como que um altar no centro da estante com espessas molduras de jacarandá que os segregavam dos livros por assim dizer plebeus. Essas raridades já foram doze, mas uma primeira edição de Hans Staden do século XVI fiz o favor de inutilizar. Foi num dia em que meu irmão me disse que, quando nasci, meu pai me tomou por um mongoloide. Eu nem sabia o que era mongoloide, foi a gargalhada do meu irmão que me acertou. Arrastei uma cadeira, alcancei o nicho e catei o livro que me pareceu mais sagrado, por causa das letras de ouro na capa dura. Espicacei página por página, depois ainda mijei em cima. A capa não consegui rasgar, e já tocava fogo nela quando mamãe chegou e meu deu um tapa na cara qu nem doeu. Mas quando meu pai desceu as escadas com o chinelo na mão, me caguei todo e mijei o que não tinha para mijar.» (p. 15-17)
Retrato de Hans Staden feito por
H. J. Winkelmann, em 1664
Página de História Verdadeira e Descrição de uma Terra de Selvagens (Marburgo, 1557)
6 comentários:
Estas narrativas sobre livros, quando de qualidade (como é o caso do excerto), têm sempre fascínio e magia...
Uma boa semana!
Pois é, para quem gosta de livros... :)
Boa semana tb para si.
Gostei imenso!
Não conheço o livro, mas vou espiolhar na Bertrand.( Tenho um dinheirito no cartão...)
Continuação de boa semana:)
A melhor maneira de sair é seguir em frente com motivação, FELIZ ANO 1016.
AG
Isabel,
Gostei imenso do livro; aliás foi o livro de Chico Buarque que li (este é o 3.º) de que mais gostei. Não gostei de .
Feliz Ano Novo, AG!
Já o comprei. Ontem fui à Bertrand e lá trouxe mais dois livros, um dele e outro de José Tolentino Mendonça. Tenho pelo menos mais dois do Chico Buarque, mas ainda não li nenhum. Este ano li pouquíssimo, porque sou desorganizada com o meu tempo.
Não completou o comentário, qual foi o que não gostou?
Bom dia:)
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