Sei que não há muitos leitores de crónicas, mas eu gosto de crónicas. Poucos são os escritores capazes de escrever crónicas. É difícil narrar um facto ou uma historieta (normalmente do quotidiano) em poucas palavras.
José Cardoso Pires, Maria Judite de Carvalho, Fernando Assis Pacheco, António Lobo Antunes e Mário de Carvalho têm em mim uma (re)leitora fiel.
«Domingo sem piqueniques não era domingo não era nada. Tudo ia preparado minuciosamente pelas nossas mães, o pão, os frangos, os enchidos, arrozes múltiplos, panados, filetes. Havia quem trouxesse caixas mais sofisticadas com copos e pratos apropriados. Mas de uma forma geral improvisava-se com panelas, tachos e o aparato das cozinhas. [...] O pastel de bacalhau era absolutamente indispensável. Mas também podia haver algum marisco. Foi num desses piqueniques no Guincho que, pela primeira vez na vida, comi lavagante, e o bem que aquilo me soube.» (p. 77)
Também participei de alguns piqueniques no Guincho, mas sem lavagante.
Parlatório do Aljube. Simplificado...
«Revolta-me mais a prisão do meu pai do que a minha própria. [...]
«Ora, o meu pai e os seus amigos, em 1959, na altura das suas prisões, integrariam, segundo a PIDE, um "organismo das cooperativas" a mando do Partido Comunista Português.
«Organismo das cooperativas, imaginem. Que prática clandestina seria a duma célula deste jaez? Encontrava-se, reuniam-se e promoviam o cooperativismo. Ademais, intervinham nas associações populares. Candidatavam-se. Davam opiniões. Recebiam "orientações" do PCP e difundiam-nas. Calculem o impacto revolucionário e alarmante desta militância, que, no fundo, pouco diferia do mero passar dos dias.
«Eram [... um] guarda-livros, [... um] contabilista, [... um] sócio duma luxuosa ourivesaria, o meu pai, agente comercial, outro, caixeiro-viajante e tudo... tudo assim.
«Estou a vê-los atrás da rede dupla, na lúgubre sala de visitas do Aljube: homens pacatos, de óculos, gente de família a enfrentar entre grades indiciações gravíssimas de subversão. Obrigaram-nos a noites sem dormir, e foram ameaçados e desconsiderados.
«O seu ar composto e atento no julgamento... Até os juízes do Plenário - sendo o que se sabe -, não obstante toda a "prova" produzida, devem ter entendido entre si que aqueles revolucionários comerciantes convenciam pouco.» (p. 84-85)
11 comentários:
Também sou fã de boas crónicas. Quanto a piqueniques, só os fiz no "alto", que me lembre: Penha e Citânia de Briteiros. E, nesta última, lembro-me de beber pirolitos, daqueles com tampa de bola de vidro.
Bom dia!
Gosto de relatos e crónicas e penso mesmo que é mais dificil escrever assim, do que um romance.
Apenas li Cardoso Pires, Lobo Antunes e recentemente a Maria Judite de Carvalho ( obrigada) e gosto muito.
Boas leituras!
Abraço para o Sul
Sou convicta leitora de crónicas, tenho mesmo alguns livros de crónicas reunidas. E acrescento a esses nomes que cita, os actuais cronistas da visão: Dulce Maria Cardoso, Mia Couto e Agualusa. Claro que António Lobo Antunes, o escritor, campeia (para mim) nesse terreno de flores pequenas. Mas há, de certeza, mais gente. Acresce que existem bloguers que os irmanam - a blogosfera é rica nessa modalidade e, ou existem por ali escritores sob pseudónimo, ou há bloguers de grande qualidade. Ao invés da sua opinião, julgo ser a modalidade mais praticada em Portugal: cinge-se a um acontecimento ou situação e, para quem gosta de contar, é um apelo. A crónica está ao alcance do vulgo, não necessita grande erudição, sabedoria ou busca de material.
Mário de Carvalho é escritor que admiro (também aprecio Ana Margarida de Carvalho cuja escrita, de inegável valor, mantem aquele travo e pendor malévolo, quase sádico que fere e entontece o leitor), nunca um livro seu me desanimou. Já o vi e ouvi algumas vezes, é pessoa de simplicidade admirável.
Gostei também destes elucidativos excertos.
Bom dia
Imperdoável, esqueci Bruno Vieira Amaral, cronista que descobri recentemente, estrela maior desse mundo específico. "O Segundo Coração" diz tudo.
Há muitos livros de crónicas aqui em casa.
Aos nomes que refere, acrescentaria o Manuel António Pina, o Paulo Varela Gomes, o Pedro Mexia e a Dulce Maria Cardoso.
Dos manos Lobo Antunes, prefiro o João, sem dúvida.
Bom dia! 🌞
Não era João Lobo Antunes que eu queria escrever: era António. Vou emendar. Adoro as crónicas dele, e só as crónicas.
Também gosto das crónicas da Dulce Maria Cardoso e dos livros do Agualusa.
Há muitos anos que não fazia um piquenique. Durante a pandemia um grupo jantante de amigos resolveu fazer um piquenique no Jardim da Estrela. Tínhamos de nos encontrar ao ar livre. E foi muito engraçado. O Jardim estava cheio de grupos a piquenicar e miúdos a brincar.
Bom dia para todos.
Mas eu não me enganei, prefiro mesmo o João, que escrevia muito bem e era um extraordinário homem da ciência. Destaco o livro de ensaios/crónicas "O Eco Silencioso" com textos admiráveis.
Também gostava das crónicas do ALA, mas deixei de gostar...
Ah, esqueci-me do MEC outro dos meus cronistas.
Boas leituras! 📚
Um dos escritores portugueses vivos de que mais gosto.
Leio as crónicos do RAP.
Boa tarde!
Ainda não comprei este livro Mário de Carvalho. Não vai passar de hoje, já que vou à Bertrand.
Desculpem, o comentário estar a sair aos bochechos.
Maria,
Eu percebi. Mas quando li, vi que me tinha enganado no nome próprio. Também gosto das crónicas do MEC.
Miss Tolstoi,
Também sou uma grande leitora do Mário de Carvalho. Já gostei mais das crónicas do RAP.
Boa noite para as duas.
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