" Pensando nos momentos maus, lembro-me daquela noite triste e chuvosa, que nunca esqueci nem poderei esquecer. Seriam 10 horas da noite. Os pequenos dormiam e eu acabava de ler, na sala, um livro que não me apetecia largar. De repente, alguém bateu à porta. Não era o António, que só voltava do S.N.I. por volta das duas horas da manhã. Era a Ofélia Marques, mulher do Bernardo Marques, a minha vizinha do segundo andar, que vinha molhada, muito abatida e com um ar friorento. Disse-lhe para entrar, levei-a para a sala e ofereci-lhe café que tomou e agradeceu, dizendo-me que era exactamente o que lhe apetecia naquele momento.
Conversámos de várias coisas, falámos do retrato, que ela estava a pintar, da mulher do Olavo d' Eça Leal, retrato que mais tarde lhe valeu o Prémio Sousa-Cardoso no concurso anual do S.N.I., mas vi perfeitamente que, apesar dos esforços que fazia para parecer natural, estava tensa e com certeza pouco feliz. Por volta das 11 horas despediu-se, dizendo:
- Estou cansada e além disso sei que você costuma deitar-se com as galinhas.
Eu protestei, mas ela insistiu em ir-se embora. Despedimo-nos, fechei a porta, fui deitar-me e adormeci rapidamente, como de costume. Contudo, antes de adormecer, ouvi correr água na casa de banho que ficava por cima da minha e pensei: « A Ofélia vai tomar um banho quente e faz bem porque tinha ar de estar gelada.» No dia seguinte, à hora do costume, por volta das nove, quando me levaram à cama o pequeno-almoço, a Jacinta entrou no meu quarto muito aflita, dizendo repetidas vezes::
- Ai que desgraça, que grande desgraça! A senhora Dona Ofélia morreu!
Fiquei tonta, desmoralizada, e perguntei-lhe:
- O quê?! Quando? Como?
A Jacinta, com muitas pausas e muitas hesitações, acabou por me dizer:
- Foi a Maria que a encontrou. Ela tem as chaves da casa e quando entrou à hora habitual e levou o café à senhora, viu logo que ela estava morta, porque estava gelada e não respirava. -E a Jacinta continuou: - Parece que tomou um banho antes de se deitar, vestiu uma camisa muito bonita e deitou-se com o gato aos pés, como era seu costume.
Eu levantei-me, arranjei-me o mais depressa que pude e fui lá acima para ver se precisavam de mim ou do telefone para alguma coisa. Já lá estavam duas ou três pessoas de família e uma amiga que me disse em voz baixa, quase ao ouvido:
- Matou-se! Tinha um tubo de comprimidos vazio em cima da cama. (...) "
- Fernanda de Castro, Ao Fim da Memória, II vol. , 1939-1987, Editorial Verbo, 1987.
Para a M.R. e para a Ana que me fizeram lembrar desta passagem das memórias de Fernanda de Castro.
4 comentários:
Adorei o excerto! Vou ver se arranjo estas memórias.
Obrigada Luís.
Ana
Obrigada por ter transcrito este pedaço das Memórias. Também as emprestei à mesma pessoa.
O quadro é de Bernardo Marques e chama-se "A dama" .
nao deu para o que eu preciso :(
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