Realmente a Fé é muito difícil de explicar e de compreender. Ou se tem (e se se tem sabe-se o que é e não necessita de explicação) ou não se tem (e neste caso por mais que se tente explicar nunca se consegue fazer compreender, porque o "racional" sobrepõe-se-lhe). E é a Fé, ou melhor a falta de Fé, que faz com que um dia se vá à missa e no outro se esqueçam os ensinamentos dessa mesma Fé.
Vem este meu filosofar - que quase parece uma piada de La Palisse (parece que o mais correcto até seria La Palice) - a propósito de uma conversa que tive nos últimos dias sobre o episódio Bíblico de Abraão e o sacrifício de Isaac que Luís Barata hoje, recordou, cientificamente.
Lia a um estudante de Teologia o texto que vou transcrever e transcrevo (sem fazer qualquer outra alteração que não seja abrir parágrafos, como faço em todas as transcrições)
[...] Já as pálpebras tinham começado a pesar-lhe quando uma voz junevil, de rapaz, o fez sobressaltar,
[...] Já as pálpebras tinham começado a pesar-lhe quando uma voz junevil, de rapaz, o fez sobressaltar,
Ó pai, chamou o moço, e logo uma voz, de adulto de certa idade, perguntou, Que queres tu, isaac,
Levamos aqui o fogo e a lenha, mas onde está a vítima para o sacrifício, e o pai respondeu, O senhor há-de prover, o senhor há-de encontrar a vítima para o sacrifício.
E continuaram a subir a encosta.
[...]
Chegando assim ao lugar de que o senhor lhe tinha falado, abraão construiu um altar e acomodou a lenha por cima dele. Depois atou o filho e colocou-o no altar, deitado sobre a lenha. Acto contínuo, empunhou a faca para sacificar o pobre rapaz e já se dispunha a corta-lhe a garganta quando sentiu que alguém lhe segurava o braço, ao mesmo tempo que uma voz gritava,
Que vai você fazer, velho malvado, matar o seu próprio filho, queimá-lo, é outra vez a mesma história, começa-se por um cordeiro e acaba-se por assassinar aquele a quem mais deveria amar,
Foi o senhor que o ordenou, foi o senhor que o ordenou, debatia-se abraão,
Cale-se, ou quem o mata aqui sou eu, desate já o rapaz, ajoelhe e peça-lhe perdão,
Quem é você,
Sou caim, sou o anjo que salvou a vida a isaac.
Não, não era certo, caim não é nenhum anjo, anjo é este que acabou de pousar com um grande ruído de asas e que começou a declamar como um actor que tivesse ouvido finalmente a sua deixa,
Não levantes a mão contra o menino, não lhe faças nenhum mal, pois já vejo que és obediente ao senhor, disposto, por amor dele, a não poupar nem sequer o teu filho único,
Chegas tarde, disse caim, se isaac não está morto foi porque eu o impedi.
O anjo fez cara de contrição, Sinto muito ter chegado atrasado, mas a culpa não foi minha, quando vinha para cá surgiu-me um problema mecânico na asa direita, não sincronizava com a esquerda, o resultado foram contínuas mudanças de rumo que me desorientavam, na verdade vi-me em papos-de-aranha para chegar aqui, ainda por cima não me tinham explicado bem qual destes montes era o lugar do sacrifício, se cá cheguei foi por um milagre do senhor,
Tarde, disse caim,
Vale mais tarde que nunca, respondeu o anjo com prosápia, como se tivesse acabado de enunciar uma verdade primeira,
Enganas-te, nunca não é o contrário de tarde, o contrário de tarde é demasiado tarde, respondeu caim.
Responde-me o jovem estudante de Teologia: Veja como Deus foi na mesma providente! Não estava lá o anjo, estava lá Caim... Deus é sempre providente!
(Nada do que acabo de narrar foi ficção. O texto é tirado das páginas 83-84 da obra de José Saramago, Caim, 3.ª ed., Lisboa, 2009. O jovem de Teologia existe e tem como nome Emanuel.
O vitral encontra-se na Catedral Melquita (Católica-Grega, rito bizantino) de Boston (Roslindale), Massachusetts, USA.).
3 comentários:
Já conhecia esta passagem do Caim de Saramago. Este episódio bíblico tem desafiado muitos teólogos e historiadores das religiões, judeus, cristãos e outros.
E o jovem Emanuel ( Deus connosco em hebraico ) tem razão, a sua lógica até é suportada pelo vitral que ilustra o post- "O Senhor providenciará"...
Confesso que cheguei a temer o pior quando vi o quadro do Caravaggio- que aqui aparecesse a tal anedota que circulou por correio electrónico. :)
Parágrafos num texto de saramago?
Vou comprar o livro.
Ana
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