Paris: Bibliothèque nationale de France,
f. 1r, Cenas do Antigo Testamento: a Criação
Arrumava alguns recortes de jornais e re-encontrei o artigo que Vasco Graça Moura publicou no Diário de Notícias, no dia 28 de Outubro de 2009, na página 54.
Devo confessar que fiquei surpreendido com o artigo. Não pela lúcidez de Vasco Graça Moura mas pela coragem que demonstrou ao publicar este artigo agora, embora já o tivesse indiciado em Outubro de 2001, na Revista Egoísta , ao escrever:
Devo confessar que fiquei surpreendido com o artigo. Não pela lúcidez de Vasco Graça Moura mas pela coragem que demonstrou ao publicar este artigo agora, embora já o tivesse indiciado em Outubro de 2001, na Revista Egoísta , ao escrever:
O Jeová da Bíblia é um ser caprichoso e muitas vezes iniquamente absurdo. O Deus dos Católicos (já agora, e por razões óbvias, é-me mais difícil falar do austero Deus dos protestantes...) é um ser em que o princípio da crueldade é transferido para a paixão de Cristo e que, no que respeita ao sem sentido do sofrimento do mundo, transpõe para uma dimensão escatológica a correcção de todas as injustiças e a abolição desse sofrimento. Em minha opinião, é preciso realmente ter muita fé para se acreditar e para se esperar que seja assim. Sem contar que se trata, no ensinamento eclesial ao longo de séculos e séculos, de um ser castrador e profundamente misógino, obstinado contra o que em nome dele se estigmatizava como 'pecado da carne', e redutor da filosofia (e portanto do próprio pensamento) à condição de serva da teologia (philosophia ancilla theologiae). A cultura, que para os Gregos era antropocêntrica, tende a tornar-se teocêntrica e cristocêntrica a partir dos primórdios do Cristianismo.
A lógica passou a ser substituída pela aceitação passiva dos chamados mistérios da fé. Deus, e não o homem, passa a ser a medida dogmática de todas as coisas. O Cristianismo instaurou uma cultura do arrependimento, na expectativa da misericórdia de um Deus cujos desígnios são imprescrutáveis."
A lógica passou a ser substituída pela aceitação passiva dos chamados mistérios da fé. Deus, e não o homem, passa a ser a medida dogmática de todas as coisas. O Cristianismo instaurou uma cultura do arrependimento, na expectativa da misericórdia de um Deus cujos desígnios são imprescrutáveis."
E Vasco da Graça Moura escreve:
O Deus do Velho Testamento é um ser intolerante, insatisfeito e vingativo. A terribilità da voz dos profetas tem qualquer coisa de deriva totalitária, existindo para o anúncio reiterado da catástrofe, se à rigidez da norma divina não for sacrificado, sem dó nem piedade, tudo e mais alguma coisa. A Bíblia é um texto compósito, de múltipla autoria, com passagens que podem ser extremamente interessantes e outras que são uma maçada insuportável, e também só um crente muito crente é que pode pretender ver no texto uma unidade que a Bíblia não tem e dar tantas voltas ao torno da interpretação que acabe por ler nela o que ela não diz.
A esta minha opinião pode, evidentemente, ser contraposta qualquer outra. Por isso mesmo é que há liberdade de pensamento e de expressão. ...
Um artigo que vale a pena ler na integra. vou publicar o resto em comentário, para não alongar este post.
7 comentários:
Continuação do artigo de Vasco Graça Moura:
A esta minha opinião pode, evidentemente, ser contraposta qualquer outra. Por isso mesmo é que há liberdade de pensamento e de expressão. O que me espanta é que nenhum dos que saltaram a protestar indignados contra Saramago se sinta chocado com a adesão irreflectida e infundamentada da maioria dos crentes à sua própria crença, muito embora o credo quia absurdum não seja propriamente um paradigma idóneo de lógica formal ou comportamental.
De resto, a Igreja Católica, receosa das iniciativas heterodoxas de interpretação dos textos sagrados e cedo feroz repressora da tolerância erasmiana, procurou evitar que a generalidade dos crentes lesse a Bíblia. Para quem duvide, aqui fica este extracto do Catalogo dos livros que se prohibem nestes Regnos & Senhorios de Portugal, de 1581: "Quanto às trasladações do testamento velho, somente se poderão conceder aos varões doctos & pios, por parecer do Bispo, com condição de que se use delas como de declarações da trasladação Vulgata, & não como texto sagrado. Mas as trasladações do testamento novo, feitas por Autores de primeira classe deste catálogo [i. e., constantes do Index], a ninguém se concedam: porque sói da tal ligação resultar aos Lectores pouco proveito, & muito perigo."
É por isso que num Portugal de matriz católica há pouca tradição de leitura directa dos textos bíblicos, que não foram interiorizados pelas consciências como na Europa luterana. Os clérigos reservaram-se o exclusivo das quatro modalidades da interpretação dos textos sagrados, histórica, alegórica, tropológica e anagógica, de modo a que o sentido literal pudesse ser ultrapassado, ou mesmo escamoteado em sede figurada ou mística, sem dificuldades de maior. O comum dos mortais não precisava de se preocupar muito com os textos, apesar de, muito antes, Gregório Magno e depois Isidoro de Sevilha terem insistido na importância da lectio divina (sobre a qual, e no tocante à Alta Idade Média, José Mattoso escreveu páginas interessantíssimas). No entanto, para o autor das Etimologias: melius est orare quam legere… Será?
Vasco Graça Moura
A ilustração é gira.
O texto, para VGM, não está mal. Não leio artigos de opinião dele para não me irritar.
A ilustração escolhida é um iluminado?
1)Uma declaração de interesses:sou ateu.
2)Uma constatação:este tema é um dos 2 mais fracturantes no Prosimetron.
3)Duas opiniões: a)VGM é um poeta esteticamente elegante e de leitura
corredia,não de todo desagradável;
b)JS é o nosso único Nobel (inteiro),estimável,e com um estilo singular.Tem,além disso,uma capacidade persistente de intervenção cívica - que eu admiro sobretudo em relação ao torpor comodista de grande parte dos nossos intelectuais.
4)Dito isto,e finalmente: li e leio a Bíblia como se de uma epopeia se tratasse e onde encontro
sempre trechos muito belos;provavelmente não vou ler "Caim".
Gostei do artigo de VGM, ele escreve muito bem.
Gosto imenso dos seus poemas e da sua lucidez, embora, politicamente divirja das suas opiniões.
Não fiquei surpreendida com este artigo.
Vasco Graça Moura traduziu "A Divina Comédia", podem achar estranha esta minha associação ou relacionação mas não é.
APS,
- Quanto ao Saramago gostei de alguns livros dele mas não de todos. A sua "singularidade" é por vezes difícil de seguir por causa da escrita sem pontuação.
- Julgo que por vezes se veste de alguma arrogância, como já referi, por causa da maneira como expõe os assuntos.
- Admiro-o politicamente porque não é um troca tintas. Sinto orgulho dele por ter sido laureado com o Nobel.
- Denota falta de espiritualidade; o que tem a ver com as suas opções de vida: ética, política e cultural.
- Vivo com um ateu e respeito essa opção. Achei graça definir-se enquanto tal.
A iluminura é fantástica! Vou ver se a amplio.
Interessante este seu post.
Sim é uma iluminura. Conta a primeira parte do primeiro livro do Génesis, desde do começo até ao sacrifício que Caim e Abel fizeram a Deus.
Tem uma segunda parte que é a continuação. Em breve falarei delas...
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