"O livrinho que, agora, Manuel Rosa me pôs nas mãos e que daqui tanto lhe agradeço - é uma antologia de orações da antiga liturgia cristã, escolhidas e traduzidas por José Tolentino Mendonça e Joaquim Félix de Carvalho. Tem na capa (cabeça, busto e braço ) da Madalena de Artemisia Gentileschi que está no Pitti (o que eu gosto desse quadro!) e chama-se O Dom das Lágrimas*. (...)
José Tolentino evoca sobretudo a espiritualidade dos Padres do Deserto e dos místicos. Evagro, o Pôntico, que explicou a acédia como a dureza das almas que resistem às lágrimas. São Gregório de Nazianza, São Gregório de Nissa, o Diácono Efrém. Fala de Orígenes e da«tristeza segundo Deus», «sede da alma», «húmido silêncio espiritual». «As lágrimas são uma fala estimada», «uma chuva de ouro», «um alagado lençol de piedade sobre o mundo». E recito ainda outra citação do Poeta, esta de Cioran:« As lágrimas são aquilo que permite a alguém ser santo, depois de ter sido homem».
Por isso, a partir do século VIII e IX, através das chamadas Missas de Alcuíno, como aprendi com a erudita introdução de Joaquim Félix de Carvalho, surgiram nos códices medievais, formulários de missas « pro petitione lacrimarum». Essas missas rezaram-se até ao Vaticano II, que acabou com elas, na reforma litúrgica que acabou com tantas outras coisas que nunca deviam ter acabado.
São belíssimas as orações da antologia, publicadas em latim e na tradução portuguesa.
Transcrevo estas duas, que no livro levam os números XII e VII:
Deus omnipotente
considera favorável estas orações
e alaga nossos olhos com rios de lágrimas
que apaguem as flamas dos incêndios merecidos
[...]
digna-te dar abundância
luz da inteligência verdadeira a estes submissos sevos
lágrimas aos olhos
contrição no coração
até que purificados do actual luto e da tristeza espiritual
da morte eterna nos afastemos como de uma ruína"
*Colecção Gato Maltês, edição Assírio & Alvim, 2002
João Bénard da Costa, Crónicas: Imagens Proféticas e outras, 1º Volume, Lisboa: Assírio & Alvim, 2010, p.71-74.
Prelúdio e Fuga nº 1, BWV 846, de "O cravo bem temperado" de Joahnn Sebastian Bach Cravista-Helmut Walcha
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