O FUTEBOL
Pousei a mala dentro do carro e mandei seguir para a morada. O motorista do táxi, na amável e hospitaleira tradição dos motoristas de táxi de Lisboa, olhou para trás, não disse nem boa noite, nem bom dia, nem coisa nenhuma, rosnou da proximidade do destino […] e arrancou aos solavancos. Depois, ligou o rádio. Atravessei a cidade a ouvir um relato de futebol.
Se há uma coisa que não posso ouvir aos domingos é um relato de futebol. Um relato de futebol é uma cacofonia que associa a melancolias e atrasos de vida de um país onde nunca acontece nada. Passear numa rua de Alfama por um domingo à tarde e apreciar o silêncio das pedras até escutar de repente, ao virar da esquina, junto ao canto dos pintassilgos e canários na gaiola, a voz nasalada e entaramelada de puerilidades do homem que relata. Passar em frente a um estádio em dia de desafio e observar as filas e filas de carros estacionados ao sol ou à chuva, com as penélopes a fazer malha ou crochet, com a mantinha nos joelhos, suportando o frio e o calor e a estalada do marido quando o clube não corre ao jeito. Passar ao largo de uma claque, bando de fúrias e euforias com os gorros às riscas e os cachecóis ao vento, a gritar esganados por um vencedor ou um vencido.
No futebol, tudo são perplexidades. […]
Clara Ferreira Alves
In: A pluma caprichosa. Lisboa: Dom Quixote, 2001, p. 365
Pousei a mala dentro do carro e mandei seguir para a morada. O motorista do táxi, na amável e hospitaleira tradição dos motoristas de táxi de Lisboa, olhou para trás, não disse nem boa noite, nem bom dia, nem coisa nenhuma, rosnou da proximidade do destino […] e arrancou aos solavancos. Depois, ligou o rádio. Atravessei a cidade a ouvir um relato de futebol.
Se há uma coisa que não posso ouvir aos domingos é um relato de futebol. Um relato de futebol é uma cacofonia que associa a melancolias e atrasos de vida de um país onde nunca acontece nada. Passear numa rua de Alfama por um domingo à tarde e apreciar o silêncio das pedras até escutar de repente, ao virar da esquina, junto ao canto dos pintassilgos e canários na gaiola, a voz nasalada e entaramelada de puerilidades do homem que relata. Passar em frente a um estádio em dia de desafio e observar as filas e filas de carros estacionados ao sol ou à chuva, com as penélopes a fazer malha ou crochet, com a mantinha nos joelhos, suportando o frio e o calor e a estalada do marido quando o clube não corre ao jeito. Passar ao largo de uma claque, bando de fúrias e euforias com os gorros às riscas e os cachecóis ao vento, a gritar esganados por um vencedor ou um vencido.
No futebol, tudo são perplexidades. […]
Clara Ferreira Alves
In: A pluma caprichosa. Lisboa: Dom Quixote, 2001, p. 365
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