Sou historiador. Todavia, aprecio particularmente a ficção e não me preocupo que o teatro, o cinema ou a literatura criem "estórias" que, de forma assumida, alterem a história, para a interrogarem ou a criticarem.
Assim sucedeu, por exemplo, com o Cabaret da Santa, do companhia Teatrão, de Coimbra, numa co-produção luso-brasileira. Ali se evoca de forma humorística, entre o teatro brechtiano e a revista à portuguesa, vista à maneira brasileira, a chegada dos portugueses e de D. João VI ao Brasil e muito mais coisas, numa sucessão talvez excessiva (verdadeira rapsódia de cenas e de músicas), em interacção com o público, que se sente ora seduzido ora "enganado", mas sempre entusiasmado.
Sobre Salazar, vi, já em posterior apresentação televisiva, Deus, Pátria e Maria, encenada, há alguns anos, no Teatro Maria Matos, da autoria de Maria do Céu Ricardo e com excelente interpretação de Márcia Breia. Mais recentemente, assisti a Férias grandes com Salazar, cujo original foi escrito pelo espanhol Manuel Martínez Mediero, apresentada pelo Teatro Nacional D. Maria II no pequeno Teatro da Politécnica.. E vi mesmo, sem me chocar, Salazar, The Musical, encenada no Teatro Villaret pelo inglês John Mowat. Independentemente de ter gostado ou não dessas peças, o certo é que se tratava também de ficção, estando bem definidos os planos da História e da "estória", sem haver qualquer confusão.
O mesmo não se pode dizer desta Vida Privada de Salazar, apresentada em horário nobre pela SIC. A vida íntima consistia, nesta apresentação de pretensões históricas, sem nenhuma qualidade, em conduzir o espectador a passar da visão de um "Salazar austero" para um "Salazar licencioso", onde tudo é permitido, desde que encha os olhos de um público estranhamente à espera da última tirada do "Chefe", que governou este país, em ditadura, durante cerca de quarenta anos. Clara Ferreira Alves, num seu artigo do Expresso, em 21 de Março de 2007, dizia ironicamente: "Salazar é que está a dar". E a cineasta Maria Medeiros, numa entrevista ao Jornal de Letras, em Junho de 2008, afirmou com desânimo: "Quando vou a Portugal choca-me a catadupa de livros, séries e produtos à volta de Salazar. Parece-me um absurdo. Nos outros países não há uma nostalgia assim de um ditador. Romantiza-se um período, ocultando o horror da tortura e da guerra".
Na verdade, vale tudo, para que o produto se venda. Seja a Vida Privada de Salazar ou alguns livros que editores sérios deveriam ter vergonha de lançar no mercado, seja o concurso Grandes Portugueses, da nossa oficialíssima RTP, com a colaboração de muitos intelectuais da nossa praça, que colocou no pódio do "maior português de todos os tempos"… António de Oliveira Salazar!
Enfim, não é de admirar que, neste panorama — que nem sequer é apenas português —, se destruam a cultura, a indústria e o comércio nacionais, surja um desemprego nunca visto e se caia numa das maiores crises de sempre, com escândalos públicos e privados que todos os dias nos batem à porta. E ninguém parece lembrar-se que o fascismo surgiu de crises idênticas da democracia política e, sobretudo, de crises da democracia social e da ética, que alguns evocam só em momentos de puro oportunismo.
De resto, vale tudo…! Mesmo tudo!? Espero que, ao menos, nos reste um pouco de vergonha, de inteligência e de esperança para mudar o "sistema", aprofundando a Democracia numa visão verdadeiramente Política e Social. Mas, para isso, é necessário uma outra Cultura. Esta é mesmo a hora da Cultura ou… a hora da incultura e do desespero.
Luís Reis TorgalAssim sucedeu, por exemplo, com o Cabaret da Santa, do companhia Teatrão, de Coimbra, numa co-produção luso-brasileira. Ali se evoca de forma humorística, entre o teatro brechtiano e a revista à portuguesa, vista à maneira brasileira, a chegada dos portugueses e de D. João VI ao Brasil e muito mais coisas, numa sucessão talvez excessiva (verdadeira rapsódia de cenas e de músicas), em interacção com o público, que se sente ora seduzido ora "enganado", mas sempre entusiasmado.
Sobre Salazar, vi, já em posterior apresentação televisiva, Deus, Pátria e Maria, encenada, há alguns anos, no Teatro Maria Matos, da autoria de Maria do Céu Ricardo e com excelente interpretação de Márcia Breia. Mais recentemente, assisti a Férias grandes com Salazar, cujo original foi escrito pelo espanhol Manuel Martínez Mediero, apresentada pelo Teatro Nacional D. Maria II no pequeno Teatro da Politécnica.. E vi mesmo, sem me chocar, Salazar, The Musical, encenada no Teatro Villaret pelo inglês John Mowat. Independentemente de ter gostado ou não dessas peças, o certo é que se tratava também de ficção, estando bem definidos os planos da História e da "estória", sem haver qualquer confusão.
O mesmo não se pode dizer desta Vida Privada de Salazar, apresentada em horário nobre pela SIC. A vida íntima consistia, nesta apresentação de pretensões históricas, sem nenhuma qualidade, em conduzir o espectador a passar da visão de um "Salazar austero" para um "Salazar licencioso", onde tudo é permitido, desde que encha os olhos de um público estranhamente à espera da última tirada do "Chefe", que governou este país, em ditadura, durante cerca de quarenta anos. Clara Ferreira Alves, num seu artigo do Expresso, em 21 de Março de 2007, dizia ironicamente: "Salazar é que está a dar". E a cineasta Maria Medeiros, numa entrevista ao Jornal de Letras, em Junho de 2008, afirmou com desânimo: "Quando vou a Portugal choca-me a catadupa de livros, séries e produtos à volta de Salazar. Parece-me um absurdo. Nos outros países não há uma nostalgia assim de um ditador. Romantiza-se um período, ocultando o horror da tortura e da guerra".
Na verdade, vale tudo, para que o produto se venda. Seja a Vida Privada de Salazar ou alguns livros que editores sérios deveriam ter vergonha de lançar no mercado, seja o concurso Grandes Portugueses, da nossa oficialíssima RTP, com a colaboração de muitos intelectuais da nossa praça, que colocou no pódio do "maior português de todos os tempos"… António de Oliveira Salazar!
Enfim, não é de admirar que, neste panorama — que nem sequer é apenas português —, se destruam a cultura, a indústria e o comércio nacionais, surja um desemprego nunca visto e se caia numa das maiores crises de sempre, com escândalos públicos e privados que todos os dias nos batem à porta. E ninguém parece lembrar-se que o fascismo surgiu de crises idênticas da democracia política e, sobretudo, de crises da democracia social e da ética, que alguns evocam só em momentos de puro oportunismo.
De resto, vale tudo…! Mesmo tudo!? Espero que, ao menos, nos reste um pouco de vergonha, de inteligência e de esperança para mudar o "sistema", aprofundando a Democracia numa visão verdadeiramente Política e Social. Mas, para isso, é necessário uma outra Cultura. Esta é mesmo a hora da Cultura ou… a hora da incultura e do desespero.
(Diário de Coimbra, 11 Fev. 2009, p. 9)
2 comentários:
Não vi, mas têm-me dito o pior...
O historiador Reis Torgal no seu melhor!
Não vi e nunca veria a mini-série por não me parecer fiável. Tal como o Professor não tenho problemas em ver "estórias" da História mas com o devido enquadramento.
A.R.
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