Concluída em 1830, Anna Bolena marca uma viragem decisiva no percurso profissional de Gaetano Donizetti: a 35ª ópera confere ao compositor de Bergamo finalmente o estatuto merecido, passados doze anos de esforço incansável, pouco coroado de êxitos. A tragédia lírica em dois actos é interpretada em várias metrópoles europeias com sucesso, e Donizetti afirma-se como personalidade artística autónoma, deixando definitivamente a conotação pejorativa de mero “imitador” de Rossini e ocupando uma posição de liderança no drama musical juntamente com Vincenzo Bellini. Desnecessário referir o estímulo que conduziu o compositor a criar obras posteriores, tais como, Parisina, Maria Stuarda ou Lucia di Lammermoor.
Na verdade, a estreia no Teatro Carcano de Milão a 26 de Dezembro de 1830, dia de Santo Estêvão (e, por tradição, início da época carnavalesca na altura), terá vivido um entusiasmo notável por parte do público e dos críticos, segundo os relatos existentes desse serão.
Na verdade, a estreia no Teatro Carcano de Milão a 26 de Dezembro de 1830, dia de Santo Estêvão (e, por tradição, início da época carnavalesca na altura), terá vivido um entusiasmo notável por parte do público e dos críticos, segundo os relatos existentes desse serão.
A boa receptividade deve-se também a Felice Romani, talvez o libretista mais competente e conceituado do seu tempo: dramaturgo e poeta de formação clássica, primava pela expressividade teatral e sentimental. Escreveu os textos para outras óperas de Donizetti, nomeadamente para O Elixir do Amor e Lucrezia Borgia, evidenciando assim a sua versatilidade e capacidade noutros géneros operáticos, ou seja, no campo da comédia e do melodrama romântico.
A Anna de Romani representa uma figura verdadeiramente trágica: injustamente maltratada, profundamente desiludida e atormentada pelo sofrimento, todavia sempre digna e sublime – em oposição à imagem leviana, intriguista e ambiciosa que as abordagens históricas habitualmente nos sugerem.
No entender da dupla Donizetti/Romani, vemos em Anna uma heroína acima de tudo, uma mulher inocente e executada por um marido cruel. Os dias de ascensão a rainha em 1533 pertencem a um passado longínquo, os negros e últimos dias de Anna marcam o presente. Romani desvia-se deliberadamente de factos históricos e reduz a cronologia dos acontecimentos, com vista a poder conceber uma narrativa mais adequada à acção teatral: o libretista recorre à acusação de bigamia que dá a Henrique VIII mais um motivo para a queda e condenação da sua esposa. A cena final que nos mostra a execução de Anna, é acompanhada de fanfarras que anunciam o cortejo nupcial de Enrico (Henrique) e Giovanna (Jane) Seymour. Donizetti opta por uma marcha trivial a evidenciar o novo matrimónio que contrasta com as frases eruditas de Anna. E mais uma vez, brilha a protagonista pela sua bondade ao perdoar a injustiça ao seu marido e à sua rival, a poucos instantes do seu triste fim. “Nel sepolcro che aperto mi aspetta, col perdono sul labbro si scenda…”.
Anna Bolena tornar-se-ia o “Leitmotiv” da obra operática de Donizetti ao longo da década de 30. Seguir-se-iam o mundo romântico, as paixões e os sofrimentos de personagens como Parisina, Gemma di Vergy ou Lucia. No entanto, foi Anna que deu o exemplo às suas sucessoras e orgulha-se de ser a primeira representante de um novo género na história da ópera.
Cont.
Imagens: Clock Tower em Hampton Court Palace; Anne Boleyn, retrato atribuído a John Hoskins; uma Anne Boleyn (Natalie Dormer) ambiciosa e intriguista na série The Tudors, ao lado do Duke of Suffolk (Henry Cavill); retrato do príncipe Edward, Henry VIII e Jane Seymour em Hampton Court Palace
4 comentários:
A história de Anna Bolena é belíssima e o Filipe ao relembrá-la, através de Donizetti, traz beleza a esta manhã de chuva e vento.
Ana
Gosto de Donizetti, mas não particularmente da verdadeira Ana Bolena,inspiradora desta ópera. Não tinha ideia de que era a sua 35ª ópera!
Luís, a forma corajosa e altiva como Ana Bolena morreu não faz dela uma história bonita?
Será que o anglicanismo só surgiu por causa dela?
Não estou a lavar a personagem que teve uma vida entre o poder, a corte e os amantes, mas julgo que ela venceu com a morte que lhe destinaram...
Dois quadros lindos.
Enviar um comentário