Ramalho Ortigão
Retrato de Ramalho por Columbano
José Duarte Ramalho Ortigão (1836-1915) nasceu no Porto, cidade onde veio a iniciar a sua carreira de homem de letras, como jornalista. Esteta, ginasta, andarilho incansável, e elegante prosador, cedo se distinguiu pela vivacidade dos seus escritos e comentários. Homem de princípios, chegou a bater-se em duelo com Antero de Quental, para desafrontar o nome de Feliciano de Castilho, por causa da polémica “Bom senso e Bom gosto”. Em parceria com Eça de Queiroz escreveu O Mistério da Estrada de Sintra e a parte inicial de As Farpas, que depois continuou a publicar sozinho. Da sua lavra, exclusivamente, são A Holanda e Praias de Portugal, entre outras obras, em que o apontamento certeiro e pitoresco, o olhar perspicaz e bem humorado denunciam a sua vocação natural de jornalista. Tradicionalista, monárquico até ao fim (D. Carlos, o Martirizado que publicou pouco depois do regicídio), senhor de um nacionalismo saudável e aberto, deixou notas inconfundíveis sobre o folclore, a arte popular e os costumes portugueses da época. São dele os excertos que se seguem, insertos em As Farpas, a propósito do Natal, e do intenso movimento mercantil que o antecede:
“…Lisboa prepara neste momento a festa do Natal.
Grandes rebanhos de perus, enrabeirados de lama, espalham no macadame as suas manchas movediças e escuras, de reflexos de aço, adornadas de florescências brancas e vermelhas dos moncos. Pessoas idóneas pastoreiam esses galináceos, guiando-os a golpes de cana por entre as rodas dos trens e por entre as pernas dos viandantes. Na compra destes perus convém escolher os mais teimosos: à força da cana, são os mais tenros.”
“… Os restaurantes empilham em exposição as perdizes, as galinholas, os patos bravos, os pastelões de presunto e vitela, os tímbales de frango misturados de “champignons”, e os ventres loirejantes e amanteigados dos perus embutidos de trufas, no meio de gargalos de prata de Champagne e das garrafas pretas do Bourgogne lacradas de verde.”
“… Na Praça da Figueira, num movimento extraordinário de apetites em circulação, grunhem os leitões, cacarejam os galos e berram alvoroçados os marrecos e as galinhas, erguidos pelas asas e arrepiados nas penas do peito pelo sopro dos compradores. A caça pende em bambolins ao longo das barracas, e enquanto coelhos mansos suspensos pelas pernas, expiram fulminados com a pancada seca dada com a mão de trave sobre as orelhas, cordeiros e cabritos esfolados enxugam ao ar, abertos de cima a baixo, com um caniço em cruz metido no ventre.”
“… Todas as especialidades culinárias se anunciam: os paios de Castelo de Vide, os presuntos de Melgaço, os vinhos da Fuzeta e de Borba, as arrufadas de Coimbra, os biscoitos de Oeiras, as queijadas de Sintra, a marmelada de Odivelas, os mexilhões de Aveiro, as frutas secas de Elvas e de Setúbal, o pão de ló de Margaride, o massapão de Espanha, o caviar da Rússia, a mortadela de Itália, as “pralinés” e os” marrons glacés” de Paris, o salmão da Escócia, a “choucroute” da Alemanha…”
“… Dir-se-ia que uma indigestão nacional se prepara e que o estômago de Lisboa vai rebentar de fartura amanhã.”
Capa d’As Farpas
Retrato de Ramalho por Columbano
José Duarte Ramalho Ortigão (1836-1915) nasceu no Porto, cidade onde veio a iniciar a sua carreira de homem de letras, como jornalista. Esteta, ginasta, andarilho incansável, e elegante prosador, cedo se distinguiu pela vivacidade dos seus escritos e comentários. Homem de princípios, chegou a bater-se em duelo com Antero de Quental, para desafrontar o nome de Feliciano de Castilho, por causa da polémica “Bom senso e Bom gosto”. Em parceria com Eça de Queiroz escreveu O Mistério da Estrada de Sintra e a parte inicial de As Farpas, que depois continuou a publicar sozinho. Da sua lavra, exclusivamente, são A Holanda e Praias de Portugal, entre outras obras, em que o apontamento certeiro e pitoresco, o olhar perspicaz e bem humorado denunciam a sua vocação natural de jornalista. Tradicionalista, monárquico até ao fim (D. Carlos, o Martirizado que publicou pouco depois do regicídio), senhor de um nacionalismo saudável e aberto, deixou notas inconfundíveis sobre o folclore, a arte popular e os costumes portugueses da época. São dele os excertos que se seguem, insertos em As Farpas, a propósito do Natal, e do intenso movimento mercantil que o antecede:
“…Lisboa prepara neste momento a festa do Natal.
Grandes rebanhos de perus, enrabeirados de lama, espalham no macadame as suas manchas movediças e escuras, de reflexos de aço, adornadas de florescências brancas e vermelhas dos moncos. Pessoas idóneas pastoreiam esses galináceos, guiando-os a golpes de cana por entre as rodas dos trens e por entre as pernas dos viandantes. Na compra destes perus convém escolher os mais teimosos: à força da cana, são os mais tenros.”
“… Os restaurantes empilham em exposição as perdizes, as galinholas, os patos bravos, os pastelões de presunto e vitela, os tímbales de frango misturados de “champignons”, e os ventres loirejantes e amanteigados dos perus embutidos de trufas, no meio de gargalos de prata de Champagne e das garrafas pretas do Bourgogne lacradas de verde.”
“… Na Praça da Figueira, num movimento extraordinário de apetites em circulação, grunhem os leitões, cacarejam os galos e berram alvoroçados os marrecos e as galinhas, erguidos pelas asas e arrepiados nas penas do peito pelo sopro dos compradores. A caça pende em bambolins ao longo das barracas, e enquanto coelhos mansos suspensos pelas pernas, expiram fulminados com a pancada seca dada com a mão de trave sobre as orelhas, cordeiros e cabritos esfolados enxugam ao ar, abertos de cima a baixo, com um caniço em cruz metido no ventre.”
“… Todas as especialidades culinárias se anunciam: os paios de Castelo de Vide, os presuntos de Melgaço, os vinhos da Fuzeta e de Borba, as arrufadas de Coimbra, os biscoitos de Oeiras, as queijadas de Sintra, a marmelada de Odivelas, os mexilhões de Aveiro, as frutas secas de Elvas e de Setúbal, o pão de ló de Margaride, o massapão de Espanha, o caviar da Rússia, a mortadela de Itália, as “pralinés” e os” marrons glacés” de Paris, o salmão da Escócia, a “choucroute” da Alemanha…”
“… Dir-se-ia que uma indigestão nacional se prepara e que o estômago de Lisboa vai rebentar de fartura amanhã.”
Capa d’As Farpas
P.S.: Boas-Festas a Todos. Aos Residentes e aos Visitantes do “Prosimetron”!
Post de Alberto Soares.
6 comentários:
Adorei reler estes trechos, especialmente a "sabedoria" quanto à escolha do perú...
Muito do entusiasmo estomacal descrito por R.Ortigão encontramo-lo hoje, em apagado sucedâneo na minha opinião, nas grandes superfícies comerciais- é lá que se encontram as iguarias provenientes de toda a parte e se fazem as encomendas para a Consoada ( sim, porque hoje em dia já há muita gente a comprá-la feita ).
Boas-Festas!
As Farpas, quer na parte ramalhal, quer na queirosiana, são sempre de grande actualidade! Boas festas também!
Eu também adorei esta escolha.
Ainda me lembro de se ir escolher o peru, ao Largo de Santo António - ainda sem Santo António e sem prédios.
O peru este ano é comigo - acho que no ano passado já foi. Devo dizer que é um grande frete: não prepará-lo, mas a quantidade de horas que o animal passa no forno.
M.
Boas Festas! Mas ainda nos devemos ver por aqui.
M.
Fantásticos, os trechos. Então o último trecho: "Dir-se-ia que uma indigestão nacional se prepara e que o estômago de Lisboa vai rebentar de fartura amanhã" continua a ser bem actual. Não é afinal o que sempre acontece no dia seguinte?
Obrigada. Adorei ler o seu post.
Boas Festas!
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