Prosimetron

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segunda-feira, 1 de novembro de 2010

A vida e a morte segundo J. S. Bach

Johann Sebastian Bach, figura cimeira da cultura ocidental, compôs, entre as muitas peças de música sacra, três cantatas relacionadas com a efemeridade humana, a morte e a esperança: as cantatas BWV 56 “Ich will den Kreuzstab gerne tragen” (Quero carregar com alegria o madeiro da cruz), BWV 82 “Ich habe genug” (Já tenho o suficiente) e BWV 158 “Der Friede sei mit dir” (A paz esteja contigo).

Concluídas nos anos em que Bach já detinha o cargo de “Kantor” na Igreja de São Tomé de Leipzig (isto é, a partir de 1723), estas três obras em geral e a cantata BWV 82 em particular, centram-se no desejo pela morte e na esperança na salvação – tema principal da liturgia do dia 2 de Fevereiro, conhecido por Nossa Senhora das Candeias ou Nossa Senhora da Purificação, que recorre ao Evangelho segundo São Lucas e que conta da apresentação do Menino Jesus no templo de Jerusalém. Do ancião Simeão, homem “justo e piedoso”, provêm as palavras “Agora, Senhor, segundo a tua palavra, deixarás ir em paz o teu servo...”, após ter tomado o menino nos seus braços, tendo-se cumprido a profecia que Simeão não morreria sem ter visto o Messias.

É neste sentido que a cantata BWV 82, composta para barítono e orquestra, deverá ser entendida na sua primeira ária: Ich habe genug, ou seja, “Já tenho o suficiente/bastante, tenho o Salvador, a esperança do crente, em meus ansiosos braços, já O vi, minha fé tocou o coração de Jesus, desejo agora, com alegria, daqui despedir-me”. A segunda ária, sugere-nos o desaparecimento lento de Simeão: "Adormeçam, olhos cansados, fechem suaves e tranquilos!" Quase exagerada, parece-nos a abordagem da última ária: Ich freue mich auf meinen Tod, isto é, "Alegro-me com a minha morte, ah!, pudesse ela vir já". A peça, ao contrário do que esperado, termina assim em compassos rápidos e alegres. O oboé, as cordas e o cantor solista sublinham o espírito de júbilo.


Esta visão é-nos incompreensível à luz dos padrões de hoje. Num ambiente em que a (eterna) juventude, o corpo e o visual dominam muitas das nossas preocupações, Bach e a sua obra representam a antítese do “way of life” contemporâneo. Enfim, os estimados leitores farão a sua análise nestes dias de Todos os Santos e dos Fiéis Defuntos, num contexto religioso ou profano, pois não quero naturalmente "impor" estas reflexões de índole católica...
Para iniciar o mês de Novembro de forma calma, segue então um registo da ária “Ich freue mich auf meinen Tod”, não interpretada por um baixo barítono, mas sim pela excelente soprano Natalie Dessay, acompanhada do conjunto Le Concert d’Astrée sob a direcção de Emmanuelle Haïm.
Imagens: Vitral com o retrato de Bach e túmulo com os restos mortais do compositor na Igreja de S. Tomé em Leipzig

5 comentários:

ana disse...

Belíssimo, belíssimo, belíssimo e apropriadíssimo quer no que diz respeito ao sagrado quer ao profano.
O dia nasce com um tímido sol graças a Bach!
Bom dia!:)

Miss Tolstoi disse...

Bach é um dos meus compositores. Gostei da sua escolha.
Bom dia!

MR disse...

Idem.
Só acrescentar que gostei de ver o vitral com a retrato de Bach e que gosto da Nathalie Dessay.
Bom dia!

LUIS BARATA disse...

Wunderbar!

Ricardo disse...

Sugestão para uma tradução ligeiramente diferente: na Cantata BWV 82, onde se lê "minha fé tocou o coração de Jesus", deverá antes ler-se algo como "minha fé trouxe Jesus até meu coração".

Mein Glaube hat Jesum ans Herze gedrückt.